Este tema, considerado tabu por muitos de nossos Irmãos, vem se constituindo motivo de muito comentário – aberta ou veladamente – com certeza desde a Constituição de 1723.
Minha atração quase que orgânica por ele (já que sou sociólogo) só faz crescer à medida que vejo se expressar, em todas as publicações de nossa Ordem, a angústia de Irmãos frustrados em suas expectativas de ver uma instituição, que é tão forte, efetivamente atuante em prol de uma sociedade humanamente mais justa.
Mas por que esse receio de até se falar em política na Maçonaria?
Porque sempre que se discute essa questão, o que vemos é arrolarem-se acaloradamente argumentos pró e contra. E, dessa forma, os ânimos se alteram, os sentimentos se sensibilizam, e a discussão não conduz, efetivamente, a nada. Creio que esse é o tipo de debate político que desde sua organização, em 1717, nossa Ordem quis, muito sabiamente, evitar.
De fato, num contexto onde “a rivalidade entre os jacobitas, partidários dos Stuarts, e o séqüito do primeiro dos Georges, então no trono da Grã-Bretanha”[1] podia colocar dificuldades para a incipiente Primeira Grande Loja, compreende-se que discussões políticas fossem desestimuladas e, até, proibidas. “Quanto à proibição de levar, para a Ordem, discussões sobre assuntos políticos e religiosos, (…) mais do que uma regra, era um ‘modus vivendi’ ocasional, para acomodar as correntes políticas e religiosas, em estado de rivalidade, na época. Não pode ser considerado um verdadeiro landmarque”.[2] Essa opinião, afora ter sido expressada por dois eminentes estudiosos, dificilmente seria contestada por qualquer pessoa de bom senso.
Mas como podemos transcender esses dois fatos aparentemente contraditórios – o natural desejo pelo posicionamento político, de um lado, e a sábia recomendação de se evitar debates que possam produzir dissensões e conflitos, de outro?
Aparentemente essa contradição decorre do fato de colocarmos em pauta uma falsa questão. Não se trata de discutir se devemos ou não tratar de política. A verdadeira questão é: de que política estamos tratando?
Se colocado dessa forma, o problema se apresenta sob novo foco. É (de bom) consenso que “política, religião e futebol, não se discutem”. Melhor diríamos: “posição política, convicção religiosa e preferência futebolística” não se discutem, pois política, religião e futebol, como quaisquer outros temas de interesse humano, devem sim ser discutidos, sob pena de se tornarem fatores de indesejável alienação.
Assim, voltando à questão: de que política estamos tratando quando nos referimos a um “natural” desejo de expressão humana? Não da política partidária, é claro, e muito menos das questões ligadas à disputa do poder institucional. Essa é a área movediça das “posições”, “convicções” e “preferências”. Quando falamos de política como um fato naturalmente humano, nos referimos ao sentido Aristotélico do termo. Para Aristóteles, sendo o Homem um ser eminentemente social, é naturalmente político, isto é, vinculado à Polis (à cidade, à comunidade; hoje diríamos: à nação e à humanidade). Nesse sentido, não pode o Homem deixar de ser político sem se tornar um ser socialmente alienado. Este tipo de alienação seria a negação absoluta de toda possibilidade de construção desse Homem Ideal preconizado pela Arte Real, pois que esse deve ser necessariamente engajado para ser socialmente útil.
Quando tomamos uma amostra dentre quaisquer publicações maçônicas, é com aquele natural posicionamento sócio-político com que fatalmente nos deparamos.
Permitam-me os Irmãos tomar como exemplo (por comodidade) o número que tenho em mãos (julho/agosto) do O Prumo[3]. Entre seus artigos encontramos, em maioria, temas com preocupações eminentemente sociais e, portanto, políticas. Nesse número o IrAnatoli Olynik discute a necessidade de uma bandeira de luta para a Ordem; o IrJoão Francisco Guimarães insiste na busca de uma “forma intensiva, extensiva e ostensiva (…) para se ordenar o caos existente no mundo profano”[4]; o IrAnselmo Quadros nos diz que “não chegaremos a ser verdadeiramente justos senão desde o dia em que nos vemos reduzidos a buscar em nós mesmos o modelo da justiça”;[5] o Ir Mário Mayerle nos fala explicitamente sobre a responsabilidade da maçonaria com o nosso futuro; o Ir Carlos Pinto insiste em que “precisamos discutir os sistemas educacionais, as questões que envolvem a saúde pública, a enorme pobreza que assola o país, (…) os problemas do desemprego crescente, a globalização da economia, o advento da Internet (…)”;[6] e por aí prosseguem excelentes trabalhos. Isso para não discutirmos (por economia) o quanto também são sociais e políticos os assuntos sobre Carma, do IrBreno Trautwein, ou sobre Maçonaria e filosofia, do IrOctacílio Schiller Sobrinho.
É nesse sentido que Aristóteles definia o Homem como um “animal político”. Na verdade, essas classificações traduzem apenas a ênfase que colocamos neste ou naquele aspecto desse ser total e integral que é o Homem. Assim, embora o nosso “ser” já tenha sido definido como “social”, “fabril”, “familiar”, “econômico”, “lúdico”, e outros tantos adjetivos, é um consenso antropológico, psicológico e filosófico que não podemos ser senão a totalidade de nossas relações com o mundo.
Desse axioma Aristotélico deriva-se um corolário da maior importância: se somos “essencialmente” seres sociais e, conseqüentemente, políticos, “todas” as nossas ações são “necessariamente” sociais e políticas. Isso significa que, sempre que pretendemos não fazer política, a estamos fazendo e da pior forma – por omissão. É dessa omissão que se fortalecem os maus governos, os corruptos, os mal intencionados, os exploradores, enfim, os dissiminadores de todos aqueles vícios que juramos enterrar nas mais profundas masmorras.
Sendo assim, é preciso discutir política, sim. A política da cidade, da comunidade, da nação, da humanidade. Aquela que diz respeito aos problemas da vida e da morte do Homem. Aquela que discute a desumanidade da fome e a injustiça da miséria. Aquela que se penaliza do doente e do viciado. Aquela que se horroriza com os preconceitos e se injuria com a intolerância.
Aquela que se escandaliza com tudo que impede o Homem de atingir a plenitude implícita em sua natureza.
É preciso uma ação política, sim. Para que não a façamos por omissão. Aquela omissão que perpetua tudo que queremos ver eliminado; que cala sobre tudo que deve ser denunciado; que bajula o opressor e escarnece o oprimido.
A nossa Ordem é uma “potência” no sentido real do termo. Precisa apenas transformar-se em “ato”. Não no sentido político partidário. Não no sentido de pretender uma “maçonocracia”. Não no sentido de pretender a tomada do poder político institucional, o que cabe ao maçom e não à Maçonaria. Sim no sentido de marcar claramente e com toda firmeza sua posição ética e filosófica com relação à vida humana, seja ela familiar, social ou política. É dessa clareza e dessa firmeza que estão carecendo os maçons. Suas angústias derivam dessa falta.
Hoje, mais do que nunca, quando vemos as grandes Potências assinando Tratados de cooperação em todos os Estados brasileiros, a esperança de uma ação ética mais efetiva se amplia.
Nossa filosofia ensina que devo começar as mudanças por mim mesmo e isso afetará o meio em que vivo. Uma verdade inquestionável, mas que necessita ser bem esclarecida. A minha transformação só afetará o meio em que vivo se ela se traduzir em uma firmeza de posição, em uma intransigência na defesa de meus valores, que “toque” aqueles com que me relaciono. Essa é a “resistência passiva” que pregava Gandhi e que venceu o império britânico na Índia. A força da resistência é maior que a resistência da força. Esse é o sentido político da Maçonaria.
Quando aceitamos que membros de nossa Ordem sejam impunemente desonestos, corruptos ou imorais, estamos sim fazendo política: aquela da pior espécie. Quando calamos face às injustiças e às desumanidades para não “ofender” aos poderosos ou para não “magoar” aos amigos, estamos sim fazendo política: aquela da pior espécie. Quando dentro da própria Ordem adotamos posturas que afrontam a filosofia que ensinamos e os valores que defendemos, estamos sim fazendo política: aquela da pior espécie.
Nós somos seres sociais e políticos. Só estaremos evoluindo e nos tornando melhores na medida em que nos tornarmos socialmente e politicamente melhores. Esse é o segredo do passado da Ordem, aquele passado do qual os artigos de nossas revistas são tão nostálgicos. A antiga Maçonaria inglesa, a francesa ou a norte-americana não eram melhores porque eram políticas. Elas eram políticas porque eram formadas de homens social e politicamente melhores. Eram homens que criam no que faziam e faziam o que criam. Àquela época se pretendia realmente construir o mundo. Hoje, a maioria pretende apenas usufruir seus confortos. Cabe a nós e a mais ninguém alterar isso. Politicamente.
[1] José CASTELLANI e Raimundo RODRIGUES. Análise da Constituição de Anderson. Londrina: Editora Maçônica A Trolha, 1995, p. 45.
[2] Ibidem, p. 69.
[3] Revista bimestral da Editora Cultural O Prumo S/C Ltda., de Florianópolis.
[4] Ibidem, p. 9.
[5] Ibidem, p. 15.
[6] Ibidem, p. 31.
* Publicado originalmente na Revista O PRUMO de novembro-dezembro/1999.