“Quando um dia perguntaram a Ma Anandamayi sobre a história de sua vida, ela declarou: “Há tão pouco a dizer… Minha consciência jamais se identificou com este corpo. Antes de existir nesta terra eu era a mesma menininha. Quando me tornei mulher, eu ainda era a mesma. Quando a família em que nasci tomou as decisões para que este corpo se casasse, eu era a mesma. Agora, diante de vocês, ainda sou a mesma. Mais tarde, quando a dança da criação turbilhonar à minha volta nos campos da eternidade, serei ainda a mesma.” Patrick Ravignant É uma prática salutar, dentre diversas outras, meditar ou ler algo leve e religioso nos minutos que antecedem o adormecer. Passar o dia trabalhando estressantemente seja com o que for pode nos conduzir até mesmo ao niilismo, à falta de fé no homem por julgarmos real esta ilusão fantasiosa que nos agride os sentidos no cotidiano. Uma boa sugestão são livros religiosos, ortodoxos, como a Bíblia ou mesmo heterodoxos – pessoalmente prefiro os menos sectários… – como por exemplo Os Loucos de Deus, de Patrick Ravignant, ediouro, 1987. A análise do fenômeno profético, messiânico, é fascinante mesmo e tangenciamos a nossa vontade, a nossa compulsão mais sincera e profunda quando esbarramos em relatos de pessoas que abandonaram tudo na vida para chegar próximo à santidade, próximo à Divindade – todas estas pessoas nos levam ao êxtase, ao transe, no mínimo à reverência: São Francisco de Assis, Sidarta Gautama Buda, Swami Ramdas, Ma Anandamayi e por aí vai. Concordo plenamente com o que diz, entre outros grandes humanistas, Roger Garaudy em Apelo aos Vivos, Nova Fronteira, 1979: “Se há saída para o Ocidente esta se encontra num diálogo entre as civilizações, no encontro do que existe de melhor e mais sublime em todo o pensamento científico, político, filosófico e religioso de nosso tempo, independentemente de fronteiras”. Estar aberto a todos estes aportes parece a direção correta. Fechar-se em apenas um deles e decidir, a partir do domínio pleno de um deles num determinado momento histórico, num certo local “é a verdade absoluta” só pode conduzir mesmo a hecatombes e tragédias. Ninguém pode ser “dono da verdade”, na melhor das hipóteses, viver “em busca da verdade” pode ser o melhor caminho. É curioso que perguntem a um profeta despojado (ou profetiza, como a Ma Anandamayi) sobre ela mesma, que se explique, enfim: como é que uma rosa – supondo-a dotada de consciência e fala – poderia “explicar” sua beleza, sua fragrância? Acaso o sol pode explicar-se? Como responderia o rouxinol se questionado quanto ao seu canto mavioso? Assim aquele que escolhe o caminho da santidade não consegue explicar-se; trata-se de um ser humano como qualquer de nós pode vir a ser caso permita que a Natureza flua livremente dentro de si mesmo. O traço comum a todos os que escolheram este caminho, além do total desapego a qualquer tipo de mundanidade, é uma poderosa irradiação de beatitude, de calma placidez diante de tudo. E daí se as idiossincrasias que regem o nosso psiquismo nos encaminham em outra direção como a da luta prática no cotidiano, que os mestres consideram ilusório? Todos os caminhos são válidos se vividos com eticidade e naturalidade. Seguir a sua pulsão ou, como dizia Joseph Campbell, “seguir a sua bem-aventurança” é o caminho. Mas por diversos motivos é sempre muito difícil travar contato pessoal com um iluminado. A tradição mística informa que “antes que a voz possa falar na presença do Mestre, tem de ter perdido a capacidade de ferir”, mas quantas vezes, no cotidiano mesmo, utilizamo-nos da palavra para ferir, magoar, ofender ou mesmo castigar? O Mestre chegou onde chegou por seu elevadíssimo grau de sensibilidade. Sensibilidade necessariamente não seletiva: sensibilidade ao bom, ao belo, ao justo, ao rude, a tudo o que existe, enfim. Este o principal motivo, penso eu, de ser tão difícil se chegar até onde se ocultam: sua sensibilidade exagerada, traço distintivo, os faria sofrer muito face a um agressor verbal cruel. Isto explica também todas as provas e traumas por que tem de passar aquele que almeja chegar próximo que seja da Iluminação: é preciso ampliar sua sensibilidade… Entre os hindus é muito respeitada a figura do Bodhisatva, o ser(satva) Iluminado(bodhi). Alguém que se desligou completamente do mundo, atingiu a iluminação e, por compaixão e amor, permanece entre os homens para instruí-los no reto caminho. Sua consciência é plena e refugia-se alhures sempre que o julgam necessário. Seu corpo físico é o veículo de sua mensagem, só prestam atenção a ele para mantê-lo em bom estado de funcionamento, sem qualquer eivor de hedonismo. Permanecem no umbral da consciência para instruir a humanidade. Um caminho admirável, sem dúvida!
Os Loucos de Deus