Barcelona, Barcelona José Nêummane Pinto
As pedras de Gaudí se movem na cor,
são ondas, ramblas, rios,
os muros de Gaudí, palmeiras.
Antonio Gaudí planta cal
e colhe o sol, o céu
na seara líquida
do Mediterrâneo.
O arquiteto semeia
Plantas de argamassa
em pontas de papiro.
Dão frutos plenos, sem prumo,
sons de concreto,
vida pensa.
Os ladrilhos de Gaudí,
menos que frases,
são crases provençais.
O velho de costas, curvo,
um risco de carvão
sobre o branco do papel,
letras, lascas de luz.
Aquém do nada,
cavernas incompletas
escavam o céu.
XI
Certa noite,
uma noite como esta,
Gaudí visitou a Sagrada Família.
Saltou da carruagem,
hirto e grave,
sacudiu o pó das polainas, parou.
Uma lua de Barcelona apitou no cais,
espalhando um som pálido,
seu filete de fósforo,
pelo pórtico do Nascimento.
Parou na pedra a sombra caprichosa
do casario branco de Moguer,
o pueblo andaluz de Huelva,
plantado em cerro factício,
desigual e catalão.
No adro convexo do templo,
a lua desenhou pátios
côncavos de Palermo Chico
em mi Buenos Aires querido.
Na noite catalã,
a lua semeou
flores do Bois de Boulogne,
lama viscosa de Lombard Street
(onde banqueiros londrinos se divertem),
pernas finas de mesas redondas
do Café de la Paix, em Paris.
Defronte do pórtico da Paixão,
o velho curvo ficou só
com a gorda lua de Barcelona.
XIV
Estas torres de pedra
são gotas de chuva,
as uvas gastas
que o sal secou
(como o sol enxuga
os grãos de café
no terreiro da data
de seu Juca Cintra,
perto de Avaré).
Estes terrões são
a chuva que o chão eleva
ao céu de Barcelona,
céu azul de Gaudí,
céu rubro na Borborema.
Suas gotas de arte,
suco mascavo
de uvas cinzentas
plantadas no espaço,
arranham o ar catalão.
Na solidão de as tramar,
a oração do arquiteto pio,
que as completa
no absurdo vazio
do adro claro.
XX
Deste chão pedras nascem,
impulso mortal.
Neste vão, pedras morrem,
solitárias e planas.
Em coisas sem vida,
que nunca morrem,
respiram paixões ancestrais
da Catalunha sem fim.
É irregular a superfície
dos caprichos
tecidos por catalão.
Vida, paixão e morte de Güell,
imortal de Gaudí,
mantido podre
no borralho-gelo
deste solo fértil.
O bafo deste parque
sabe a súbito beijo
roubado.
XXV
Quebrar bem cada ladrilho,
sobretudo dos de cor mais forte.
como confetes imprevistos,
atirá-los ao acaso;
fazê-los espalhar-se ao léu,
sem plano algum.
Depois, pregá-los à cal do muro,
como se salpicam estrelas no céu.
Ou seja, ordená-los
na desordem do belo.
Assim faz Antônio,
pedreiro anônimo,
arquiteto bárbaro
da Borborema,
ao ornar fachadas
de subúrbio,
no Rio de Janeiro.
Assim fez Antoni,
arquiteto eterno,
ao visitar, de madrugada,
o banco-rio
do Parque Güell,
a meio caminho
entre Los Caidos e o Coliseu.