ESOTERISMO CRISTÃO
Considero a tese de René Guénon, abaixo comentada por d’Ansembourg, sobre as origens (esotéricas) do Cristianismo, da mais relevante importância, se mais não fosse pelo cuidadoso respeito de ambos os autores para com a verdade. Eles não embarcam em interpretações fantasiosas (tão em moda) e nem se deixam seduzir pela esperança de encontrar elos escondidos entre as coisas. Exatamente por isso, a tese da origem esotérica do Cristianismo me parece ainda mais fortalecida, pelo “argumento de autoridade” de dois estudiosos sérios. Por que me deixo eu seduzir por essa esperança? Porque vejo nessa tese um pouco mais de esclarecimento das ligações da Arte Real com uma Tradição que permeou as grandes religiões do passado e, por isso e com isso, sobreviveu ao advento da cultura ocidental, embasando e estruturando essa cultura, ainda que hoje esteja reprimida, especialmente pelo materialismo científico que formou o paradigma da modernidade no Ocidente.
Há alguns anos, as paredes da grande cidade estavam de novo empapeladas com cartazes eleitorais que prometiam uma onda de renovação e de felicidade. Os do partido comunista (tendência Moscou) haviam sido pregados por cima dos do partido comunista (tendência Pequim) e vice-versa. Ao lado, figuravam grandes slogans do partido liberal que nenhum dos dois irmãos inimigos havia julgado útil ocultar ou arrancar.
Acaso não ocorreu fenômeno similar com o nascimento do Cristianismo? São Paulo, o apóstolo dos gentios, deu contribuição tão determinante para a expansão da jovem religião, que caberia se perguntar se, sem ele, ela teria sobrevivido; para isso, comentou e desenvolveu o patrimônio judeu dessa nova religião com a ajuda de elementos e noções gregas que recordam a filosofia dos gentios e suas religiões de Mistérios. Com efeito, se dedicou ao mundo greco-oriental que, sem esta “preparação”, teria tido grande dificuldade para assimilar o ensinamento de Jesus, que se dirigia à mentalidade judia (l). Esta adaptação deveu estar na raiz das incompreensões e do ódio que surgiram desde o começo entre judeus e cristãos. Por outro lado, caberia se perguntar também se as surpreendentes semelhanças entre cristianismo Paulino e as religiões de Mistérios ou iniciáticas antigas não foram as que provocaram as execrações mútuas que conhecemos. Se bem que os cristãos sofreram essas ferozes perseguições durante os três primeiros séculos, certamente devolveram o troco (centuplicado) aos pagãos, por via da erradicação.
Sem dúvida, se se faz o esforço de levantar as cortinas e os véus, se se vai além das imagens e ritos para farejar o bom odor de vida que esparge a medula dos Sábios, ficaremos surpresos de sentí-lo, tanto no caso dos judeus como no dos cristãos, tanto nos Mistérios pagãos como na Tradição apostólica: em ossos separados a única medula suculenta!
Tivemos a audácia de afirmar que as religiões de Mistérios e as iniciações pagãs apresentavam grande similitude com o Cristianismo dos primeiros séculos: voltaremos posteriormente a isso. Não obstante, devemos constatar que as origens do Cristianismo permanecem muito misteriosas e ainda hoje em dia nos vemos obrigados a esboçar hipóteses para tentar mobiliar as sombrias fachadas de paredes que subsistem em sua história primitiva.
Certamente não resolveremos aqui estes enigmas; nossa ambição se limita a dar a conhecer melhor uma tese que talvez explique alguns mal-entendidos e que não pode ser rechaçada facilmente se alguém se esforçar realmente em refletir sobre a questão, abandonando todo preconceito, tanto clerical quanto anticlerical. Esta tese a expressou René Guénon em seus Aperçus sur l’Esotérisme Chrétien (Ed.Traditionnelles, Paris, 1971):
“Longe de ser a religião ou a tradição esotérica que conhecemos atualmente por este termo, em suas origens o Cristianismo tinha, tanto em seus ritos como em sua doutrina, um caráter fundamentalmente esotérico e, por conseguinte, iniciático. Encontramos confirmação disso no fato de a tradição islâmica considerar o Cristianismo primitivo propriamente como uma tarigah, isto é, uma via iniciática e não como uma shariyah, ou legislação social dirigida a todos; isso é tão certo que posteriormente se teve que suprir esta falta com a constituição de um direito ‘canônico’ que, na realidade, não foi mais que uma adaptação do antigo direito romano, ou seja, algo que veio inteiramente do exterior e não um desenvolvimento do que estava contido no Cristianismo em si. Ademais, é evidente que no Evangelho não se encontra nenhuma prescrição que possa ser considerada possuidora de um verdadeiro caráter legal no sentido próprio desta palavra; a expressão que todos conhecemos de ‘dar a César o que é de César …’ nos parece muito adequada neste caso, já que implica formalmente, para tudo que é de ordem exterior, a aceitação de uma legislação completamente estranha à tradição cristã e que não é mais que a existente no contexto onde essa tradição nasceu, porquanto estava incorporada ao Império romano. Seria, sem dúvida, uma grave lacuna se o cristianismo houvesse sido então no que se converteu mais tarde; a existência de tal lacuna não só seria inexplicável, senão totalmente inconcebível em uma tradição ortodoxa e regular, se essa tradição tivesse que comportar realmente um exoterismo e um esoterismo, e se tivesse, inclusive, que se aplicar antes de tudo ao domínio exotérico; pelo contrário, se o Cristianismo tivesse o caráter que acabamos de dizer, a coisa se explicaria sem nenhum esforço, posto que não se trataria, em absoluto, de uma lacuna, mas de uma abstenção voluntária de não intervir em um setor que, por definição, não lhe concernia nessas condições.
Para que isso tivesse sido possível, teria sido necessário que a Igreja cristã, nos primeiros tempos, tivesse constituído uma organização fechada ou reservada, na qual nem todos eram admitidos indistintamente, senão só os que possuíam qualificações necessárias para receber validamente a iniciação sob uma forma que se poderia chamar “crística”; e se poderia encontrar com facilidade muitos indícios que mostram que realmente ocorreu assim, ainda que esses indícios sejam no geral incompreendidos em nossa época e que, inclusive, como conseqüência da tendência moderna que nega o esoterismo, se busque, com demasiada freqüência, de forma mais ou menos consciente, desviá-los de seu verdadeiro significado”. (2) (pgs. 9 e 10).
Devemos reconhecer que o argumento de Guénon tem seu peso. Ao fundar o Judaísmo, Moisés lhe deu livros legislativos que regulavam toda sociedade judia (o Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, etc.). Assim também Maomé, ao transmitir a lei corânica, organizou o mundo do Islã tanto no terreno profano quanto no religioso. O Novo Testamento carece deste caráter legislativo do que Guénon deduz que não estava destinado a criar uma nova religião com uma sociedade também nova a aberta a todos.
Porém se os ritos cristãos eram, a princípio, especificamente iniciáticos e reservados, como se explica que tenham vindo a se tornar parte de uma religião que se dirigia ao grande público?
“Seguramente deve ter se tratado de uma adaptação que, em que pese as deploráveis conseqüências que teve em alguns aspectos, foi plenamente justificada e inclusive necessária, dadas as circunstâncias do tempo e do lugar. Se considerarmos qual era, naquela época, o estado do mundo ocidental, isto é, o conjunto de países que compreendia o Império romano, podemos nos dar conta de que se o Cristianismo não houvesse ‘descido’ ao domínio exotérico, este mundo, em seu conjunto, haveria perdido completamente suas tradições, já que as existentes até então, como a greco-romana que predominava de forma natural, havia alcançado um grau tão elevado de degeneração que indicava que seu ciclo de existência estava a ponto de terminar (3). Este ‘descenso’, queremos insistir nisso, não foi em absoluto um acidente ou um desvio; ao contrário, devemos considerar que teve um caráter verdadeiramente ‘providencial’, já que evitou que o Ocidente caísse, naquele momento, em um estado em que, no final das contas, pode ser comparado ao que vivemos agora. O momento em que devia produzir-se uma perda geral da tradição, como o que caracteriza os tempos modernos, todavia não havia chegado; fazia falta, pois, que ocorresse um ‘restabelecimento’, que somente o Cristianismo poderia operar, com a condição de renunciar ao caráter esotérico e ‘reservado’ que teve a princípio; e assim, o ‘restabelecimento’ não só iria ser benéfico para a humanidade ocidental, o que é demasiado evidente para termos que insistir nisso, senão que, por sua vez, estava em perfeito acordo com as leis cíclicas em si mesmas, tal como o está qualquer ação ‘providencial’ [aqui Guénon joga com o termo ‘providencial’ referindo-se à Providência divina. NT] que intervem no curso da história.
Seria provavelmente impossível designar uma dada concreta a esta mudança que converteu o Cristianismo em uma religião no sentido próprio da palavra e em uma forma tradicional dirigida a todos sem distinção. De qualquer maneira, o certo é que era um fato consumado na época de Constantino e do Concílio de Nicéia, de forma que este não teve mais que ‘sancionar’, por assim dizer, inaugurando a era das formulações dogmáticas destinada a constituir uma apresentação puramente exotérica da doutrina. Isso não podia ocorrer sem alguns inconvenientes inevitáveis, dado que o fato de encerrar deste modo a doutrina em umas fórmulas claramente definidas e limitadas, fez com que fosse muito mais difícil, inclusive para aqueles que realmente eram capazes disso, penetrar no sentido mais profundo; ademais, as verdades de ordem propriamente esotéricas, que estavam por sua própria natureza fora do alcance da maioria, já não podiam ser apresentadas de outra forma que como ‘mistérios’, no sentido que a palavra tem vulgarmente, isto é, algo impossível de ser entendido pela maioria, inclusive proibido de aprofundar. Sem dúvida, estes inconvenientes não foram tão grandes para se opor à constituição do Cristianismo na forma tradicional exotérica ou para impedir sua legitimidade, dada a imensa vantagem que, como dissemos, haveria de resultar posteriormente para o mundo ocidental; ademais, se o Cristianismo como tal deixava de ser iniciático, restava ainda a possibilidade que subsistisse em seu interior uma iniciação especificamente cristã para a elite [Guénon refere-se aqui, evidentemente, a elite no sentido do conhecimento e não no sentido social], que não podia aceitar apenas o ponto de vista exotérico, encerrando-se nas limitações inerentes a esse; porém essa é uma questão que analisaremos adiante.
Por outro lado, devemos sublinhar que esta mudança no caráter essencial e inclusive na natureza mesma do Cristianismo, explica perfeitamente, como dizíamos a princípio, que tudo o que precedeu havido sido voluntariamente envolvido na obscuridade e, inclusive, que não podia ter sido de outra foram. É evidente que a natureza do Cristianismo original, enquanto era essencialmente esotérica e iniciática, tinha que permanecer completamente ignorada pelos que agora eram admitidos ao Cristianismo convertido em exotérico; por conseguinte, tudo que pudesse revelar, inclusive de forma indireta, o que o Cristianismo havia sido realmente em seu começo, devia permanecer coberto de um véu impenetrável” (ibidem, pgs. 13 a 16).
Se poderia pensar que o extraordinário número de heresias denunciadas já desde o princípio da história do Cristianismo está em grande parte vinculado à necessidade em que a Igreja se encontrou repentinamente de definir dogmaticamente a Verdade, utilizando uma linguagem dirigida a todos. Ademais, de um ponto de vista exotérico, as autoridades religiosas quiseram julgar e condenar ensinamentos que normalmente não tinham que ser divulgados, do que resultou uma confusão imensa; é este o sentido expresso por uma importante nota de Guénon: “Por outro lado, observamos que a confusão entre estes dois setores (exotérico e esotérico) constitui uma das causas que com maior freqüência origina as ‘seitas’ heterodoxas; não é de estranhar que um grande número de antigas heresias cristãs tivesse essa origem. Isso explicaria as precauções tomadas para evitar, na medida do possível, esta confusão, cuja eficácia não poderíamos de nenhuma maneira por em dúvida, inclusive porque, de outro ponto de vista, estamos tentados a lamentar que tivessem como efeito secundário a colocação de dificuldades quase insuperáveis ao estudo profundo e completo do Cristianismo” (p. 17).
Rogamos ao leitor que nos desculpe pela extensão dessas citações, porém nos parece interessante que os cristãos cultos conheçam uma tese que foi rechaçada mais por ardor partidário que por objetividade.
Tem razão Guénon? Reconhecemos estar seduzidos por sua idéia audaz, posto que explicaria porque há tão escassas certezas a respeito dos primeiros séculos cristãos; porém não somos nós que podemos decidir isso. Ademais, do argumento “legislativo” indicado anteriormente, Guénon faz valer a semelhança entre os ritos de iniciação e o ritual dos Sacramentos. De nossa parte, acrescentaremos três elementos novos:
1) O cursus honorum dos catecúmenos é cópia fiel das iniciações;
2) O Cristianismo primitivo tem um estreito parentesco com o culto de Mitra, que constitui em si mesmo uma religião de Mistérios;
3) Encontramos nas cartas de São Paulo uma terminologia equivalente à das iniciações antigas.
O Catecumenato
No século III, o Concílio de Elvira codificou o caminho que deviam seguir os que aspiravam ao batismo; as fontes confiáveis são poucas sobre o que ocorreu nos dois primeiros séculos.
Primeiro, se punha à prova o candidato mediante um severo exame de admissão; se prestava uma especial atenção à sua profissão, posto que os que exerciam uma profissão relacionada às idolatrias (pintores, escultores de imagens…), os guerreiros, os empregados em artes circenses, os adivinhos, os magistrados, etc., eram excluídos. Se julgavam séria a conversão, o aspirante recebia os títulos de Cristão e de Catecúmeno (isto é, discípulo ou aprendiz) depois de uma recepção ritualística (imposição de mãos, sopro do Espírito Santo…).
Havia três graus. O primeiro era o de “ouvinte” ou “auditor” (akouomenos, audiens) que devia permanecer mudo e assimilar a catequese durante um mínimo de dois anos. A semelhança com o primeiro grau da Ordem dos Pitagóricos, o grau de “ouvinte” (akousmatikoi), é surpreendente (4).
O “ouvinte” qualificado ascendia ao grau de “prostrado” (hipopipton, genu flectens ou ainda orans). Antes de anunciar as preces ao Ofício, o diácono dizia: Já não há Ouvinte, já não há infiel. Após haver saído, ordenava aos catecúmenos das duas classes superiores e aos batizados que rogassem por ele e um pouco mais tarde pedia a todos os catecúmenos que se fossem, a fim de que somente os batizados (ou fiéis) assistissem ao Mistério da Missa.
Os “prostrados” se convertiam em “competentes” (os que buscam juntos); também se lhes chamava illuminandi (que devem ser iluminados pelo Batismo). Era lhes confiado o mistério da Santa Trindade, a doutrina relativa à Igreja e à remissão dos pecados, matéria sobre a qual seriam depois examinados. E só pouco tempo antes de seu batizado se lhes comunicava o Símbolo dos Apóstolos (Credo) e o Pater.
Durante a Quaresma podiam “inscrever-se” com um novo nome e esta inscrição lhes concedia o título de “eleitos” a fim de ser batizados na Páscoa. O Batismo era precedido por rigorosos jejuns e abstinência e continência; o batizado recebia o título de “fiel”, de “iniciado”, de “iluminado” ou, ainda, de “criança” (puer, infans) [Quem não voltar a ser criança… NT].
Porém não nos estenderemos sobre o ritual próprio do Batismo.
Nos primeiros tempos o Batismo não se recebia antes da idade adulta. O título de “criança” se outorgava a um adulto batizado que, renascido com um novo nome, devia crescer e alcançar a plenitude da maturidade segundo a via ensinada por Cristo (5).
Tudo isso mostra que a nova religião, ainda que tivesse se expandido rapidamente pelo império romano, era muito exigente quanto à qualidade de seus membros e somente os admitia progressivamente aos santos Mistérios segundo um método que se parece a iniciações sucessivas (6).
Os mistérios de Mitra
Este deus iraquiano inicia sua carreira no mundo romano no primeiro século antes de J.C.
Luz emanada do céu, nasce de uma rocha, de uma pedra regeneradora. Somente alguns pastores assistem ao milagre e vêem a adorar ao menino divino oferecendo-lhe as primícias de seu rebanho. Poder-se-ia pensar que figura dos Reis Magos que encontramos no Cristianismo é um reconhecimento, senão uma filiação, ao menos longínqua, com a religião iraquiana dos Magos.
O culto se celebrava em um santuário que tinha forma de cova (spelaeum); comemorava-se o nascimento de Mitra em 25 de dezembro e as iniciações se realizavam na primavera “na época pascal em que os Cristãos também admitiam os catecúmenos ao batismo” (7).
Rapidamente as duas religiões competiram; sua difusão se fez no mesmo ritmo em todo o Império romano durante os três primeiros séculos.
“A luta entre as duas religiões rivais foi tanto maior porquanto seus caracteres eram semelhantes. Assim mesmo seus adeptos formavam grupos secretos, estreitamente unidos, cujos membros se outorgavam o nome de ‘Irmãos’. Os ritos que praticavam ofereciam numerosas analogias: os sectários do rei persa, como os cristãos, se purificavam por um batismo, recebiam como que em uma confirmação a força de combater os espíritos do mal e esperavam de uma comunhão a salvação da alma e do corpo. Também como eles, santificavam o domingo e festejavam o nascimento do Sol em 25 de dezembro, o dia em que se celebrava a Natividade, ao menos desde o século IV. Predicavam também uma moral imperativa, consideravam meritório o ascetismo e contavam entre as virtudes principais a abstinência e a continência, a renúncia e o domínio sobre si mesmo. Suas concepções do mundo e do destino do homem eram similares: tanto uns quanto outros admitiam a existência de um céu dos bem-aventurados, situado nas regiões superiores, e um inferno, povoado de demônios, contido nas profundezas da terra; situavam nas origens da história um dilúvio; a fonte de suas tradições era uma primitiva revelação; por último, também acreditavam na imortalidade da alma, no juízo final e na ressurreição dos mortes na conflagração final do universo.
Vimos como a teologia dos mistérios de Mitra “mediador” é equivalente ao Logos alexandrino. Como ele, Cristo era o Mesites, o intermediário entre seu Pai celeste e os homens, e, como ele, também formava parte de uma trindade. Estas semelhanças não eram certamente as únicas que a exegese pagã estabeleceu entre eles, e a figura do deus taurino que se resigna, contra sua vontade, a imolar sua vítima para criar e resgatar o gênero humano, foi seguramente comparada à imagem do Redentor que se sacrifica para a salvação do mundo (…).
As semelhanças entre as duas igrejas inimigas eram tão numerosas que produziram um impacto considerável na própria antiguidade. Desde o século II, os filósofos gregos estabeleceram entre os mistérios persas e o cristianismo um paralelismo mais favorável aos primeiros. Por sua vez, os apologistas insistem que as analogias entre as duas religiões são explicadas por uma falsificação satânica dos ritos mais sagrados de seu [próprio] culto. Se as obras polêmicas dos partidários de Mitra ainda existissem, veríamos, sem dúvida, nelas, a mesma acusação dirigida a seus adversários.
Podemos estar satisfeitos de escavar uma questão que dividia aos contemporâneos de então e que sempre será, sem dúvida, impossível de resolver. Conhecemos pouco, para não dizer quase nada, dos dogmas e da liturgia do mazdeísmo romano, assim como do desenvolvimento do cristianismo primitivo para podermos determinar quais foram as influências recíprocas que atuaram sobre sua evolução simultânea” (8).
É impossível, nos limites deste artigo, entrar nos detalhes dos sete graus de iniciação e do segredo que rodeava uma doutrina progressivamente revelada. Remetemos o leitor à relevante obra de Cumont, assim como à de M. Vermaseren, intitulada Mithra, ce dieu mystérieux, ed. Sequóia, 1960. Reteremos dele que este culto era, sem dúvida, uma religião de Mistérios com diversos graus de iniciação que se praticavam em segredo e que os cultos pagãos consideravam o cristianismo nascente no mesmo nível.
São Paulo e os mistérios
Antes de falar da terminologia de São Paulo, seria útil recordar brevemente o que eram as iniciações antigas (9). Aqui também as fontes são limitadas e restam muitas perguntas sem resposta; temos que reconhecer que os Antigos Sábios foram mais discretos a respeito de suas cerimônias secretas que os iniciados dos trezentos últimos anos. Recordaremos dois textos clássicos. O primeiro procede da maravilhosa obra El asno de oro (Las Metaforfosis) de Apuleyo (10) na qual Lúcio aspira a ser iniciado nos Mistérios de Isis: “Dia a dia crescia em mim o desejo de receber a consagração. Em várias ocasiões havia ido visitar ao grão-sacerdote para suplicar-lhe encarecidamente que me iniciasse por fim nos mistérios da santa noite”.
Antes de hablar de la terminología de San Pablo, sería útil recordar brevemente lo que eran las iniciaciones antiguas (9). Aquí también, las fuentes son limitadas y quedan muchas preguntas sin resolver; hay que reconocer que los Antiguos Sabios han sido más discretos respecto a sus ceremonias secretas que los iniciados de los trescientos últimos años. Recordaremos dos textos clássicos. El primero procede de la maravillosa obra El asno de oro (o Las Metamorfosis) de Apuleyo (10) en el que Lucio aspira a ser iniciado en los Misterios de Isis:
Porém respondem a Lúcio que tenha paciência.
“Devia evitar cuidadosamente tanto a precipitação como a desobediência, assim como a dupla falta de mostrar certa lentidão quando me chamassem ou certa pressa ao não haver recebido a ordem. (…) E eis que as chaves do inferno e a garantia de salvação estão nas mãos da deusa. O ato mesmo da iniciação figura uma morte voluntária e uma salvação obtida pela graça. O poder da deusa (…) os faz renascer de certa maneira pelo efeito de sua providência e lhes oferece, devolvendo-lhe a vida, uma nova existência” (XI, 21).
Eis aqui o que diz São Paulo:
“Vemos a Jesus, coroado de glória e honra através da experiência da morte, de modo que pela graça de Deus, provou a morte para o proveito de todos. Com efeito, convinha que Aquele, graças e através de quem existem todas as coisas, se tornasse “perfeito” (teleiosai), depois de haver levado à glória um grande número de filhos, ao iniciador de sua salvação por meio das provas” (Hebr. II, 9-10).
Em outros termos (talvez mais atrevidos), o Pai levou o Filho à plenitude da iniciação e este fará o mesmo com um grande número de seus filhos.
Encontramos nestes dois versículos tudo o que constituía a antiga iniciação: as provas, a morte, a coroação ou a perfeição da iniciação. Observamos, de passagem, que se trata de noções gregas ou greco-orientais ou, inclusive, pagãs (para utilizar um termo ambíguo), porém em nenhum caso judias.
A palavra teleiosai é um indício claro, como o afirma o exegeta católico N. Hugedé: “o termo teleio, “perfeito”, se utiliza na língua grega de forma muito especial e não tem muita relação com a indicação de uma qualidade moral. É um termo da linguagem técnica filosófica e religiosa, utilizado para designar aquele que já não tem mais nada a aprender, que alcançou a plena maturidade e a completa iniciação, por oposição a profano, criança, ao homem comum que, embora possua todas as virtudes, não está consciente dos segredos que estão reservados a um número muito reduzido de privilegiados. A obra de Paulo é um testemunho constante desse uso” (12).
Encontramos o termo de teleios, perfeito, com um sentido indubitavelmente iniciático, no extraordinário tratado da Crátera de Hermes Trismegisto.
“Assim, pois, todos os que prestaram atenção à proclamação e foram batizados com este batismo do Nous, participaram do conhecimento (gnosis) e voltaram perfeitos (teleioi), já que receberam o Nous” (13).
Nos resulta difícil crer que o verdadeiro pensamento de Paulo está separado do de Hermes, quando diz:
“Transformai-vos pela renovação do Nous para experimentar por vós mesmos o que é a Vontade de Deus: o Bem, o Prazer, a Perfeição” (Rom. XII, 2).
Em repetidas ocasiões Paulo fala de crianças (nepíoi) que se devem converte em adultos maduros, em “perfeitos”; assim mesmo, nas iniciações antigas ou nas religiões de Mistérios, aquele que acabava de ser recebido era comparável a uma criança – acaso o iniciado não é o que recebeu um começo (initium)? – que, graças a alguns degraus ascendentes, tinha que progredir até a perfeição ou maestria.
“Embora o tempo tenha feito de vós mestres (didaskaloi), necessitais de novo que vos ensinem os elementos primordiais dos oráculos de Deus e haveis chegado ao ponto em que necessitais leite em lugar de alimento sólido. Quem está, todavia, na etapa do leite não tem a experiência da palavra justa: é uma criança. Em troca, o alimento sólido é para os que são perfeitos (teleioi), para aqueles cujos sentidos têm sido exercitados (14) pela experiência, a fim de poder distinguir o bem do mal. Por isso, deixando de lado o ensino primário referente a Cristo, interessemo-nos pelo ‘ensino perfeito’ (teleiotes)” (Hebr. V, 12 e VI, 1)*.
“Irmãos, não sejais crianças em vossos pensamentos (…). Em vez disso, sede perfeitos” (I Cor. XIV, 20).
Ademais, Paulo especifica claramente que fala de mistérios que devem manter-se secretos e que este ensinamento não está destinado mais que à elite muito seleta dos perfeitos: “se fala de Sabedoria entre os ‘perfeitos’ e não de uma sabedoria deste mundo… Porém falamos de uma sabedoria de Deus no mistério, a sabedoria oculta, aquela que Deus predestinou para nossa glória já antes dos séculos” (I Cor.II, 6-7).
Esta sabedoria reservada se chama também “gnose”.
“Oh! Profundidade da Riqueza, da Sabedoria e da Gnose de Deus!” (Rom. XI, 33).
É nesta Gnose onde devemos renascer primeiro, como uma criança, e logo crescer a fim de alcançar a perfeição, como afirma a Pedra sobre a qual está edificada a Igreja (que se autodenomina como Epopte, tal como assinalamos em II Pedro I, 16): “Cresce com a graça e na Gnose de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (II Pedro III, 18).
Esta Gnose se transmite entre os que foram escolhidos. Em grego, “transmissão” ou “tradição” é paradosis, que procede do vergo paradidonai, “transmitir”.
“Pelo que a mim se refere –diz Paulo- tenho recebido do Senhor o que vos tenho transmitido (paradidonai)” (I Cor. XI, 23). E felicita aos Coríntios por guardar fielmente este depósito sagrado: “Louvados sejais por recordar-vos sempre de mim e manter as tradições (paradosis) tal como as tenho transmitido (paradidonai)” (ibidem XI, 2).
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(*) Os termos do Novo Testamento que acabamos de citar (teleios, noûs, gnosis, paradosis, mysterion, epoptes) eram utilizados tecnicamente nas sociedades fechadas dos três primeiros séculos. Esta utilização, às vezes surpreendente, não basta para provar definitivamente a verdade da tese de Guénon, já que este vocabulário era também utilizado em círculos mais amplos, por gente culta, e de forma geral na literatura filosófica e religiosa da época. Não se pode esquecer que em Tarso, pátria de São Paulo, havia uma universidade dominada por professores estóicos; ignoramos se ele mesmo a freqüentou, mais deve ter sido influenciado, já que encontramos elementos tomados ao estoicismo em seu método e em seu pensamento. Isso pode ter feito possível que um grande número de termos se tomaram emprestados a essa filosofia.
O parentesco do Cristianismo primitivo com o culto de Mitra é surpreendente porém não convincente, posto que ainda subsistem demasiadas incógnitas em suas respectivas histórias.
A seleção dos catecúmenos e a disciplina de segredo que rodeava o ensinamento recebido em cada grau, parecem constituir argumentos mais sólidos, porém tampouco são mais determinantes, já que , se bem que estas instituições estavam estabelecidas no século III, se ignora quando começaram. Ademais, a elevada qualidade que se exigia aos “fieis” no catecumenato explicaria a vitalidade da jovem religião, o que mereceria ser mediato por um grande número dos que hoje se consideram “fiéis” (e fiéis a que?).
O argumento de mais peso segue sendo o de Guénon: se tivessem o firme propósito de fundar uma religião separada do judaísmo e aberta a todos, porque os autores do Novo Testamento não legislaram? A pergunta provavelmente ficará sempre aberta, porém convém observar que apresenta não apenas um interesse histórico (e por conseguinte bastante limitado). Com efeito, se os escritos neotestamentários – que não se dirigiam a todo mundo – foram destinados a uma sociedade eleita e preparada (a dos “Perfeitos”, a quem fala São Paulo), só os “fiéis” verdadeiramente qualificados podem entendê-los na realidade. Talvez houvesse mal-entendidos? E que valor tem a exegese dos Patriarcas e a de hoje em dia – tão diferente daquela? Preferimos não responder cruamente a estas perguntas delicadas, e em vez disso formularemos desejos para que os fiéis qualificados (como um fermento na massa) se unam livre e fraternalmente para salvar a humanidade cega, surda e suicida. Oxalá possam estudar com amor a verdadeira paradosis e suplicar ao Espírito Santo que escolha seus servidores aqui embaixo e infunda o puro Nous da GNOSE, objeto de toda iniciação autêntica e de toda religião revelada: MORTE ao mundo, RENASCIMENTO na pureza e PERFEIÇÃO na vida corporificada em Deus.
Creio em Jesus Cristo que morreu e foi sepultado e que desceu aos infernos; ao terceiro dia ressucitou dos mortos e subiu ao céu e está sentado à direita de Deus Pai todo poderosos, de onde virá para julgar aos vivos e aos mortos. (Símbolo dos Apóstolos).
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1 Sobre esta cuestión controvertida, se podrá leer las obras imparciales (¿por qué es eso tan poco frecuente?) de Charles Guignebert: Le Christianisme Antique, Flammarion, París, 1928, así como Le Christ, Albin Michel, 1969.
2 « Con frecuencia hemos tenido la oportunidad de constatar esta manera de proceder en la interpretación actual de los Padres de la Iglesia, y particularmente de los Padres griegos; nos esforzamos, todo lo que podemos, en sostener que es erróneo querer ver en ellos alusiones esotéricas, y, cuando la cosa se vuelve totalmente imposible, uno no vacila en culparles y declarar que hubo por su parte una flaqueza deplorable». (Nota de Guénon)
3 «Está claro que cuando hablamos del mundo occidental en su conjunto, exceptuamos una élite que no sólo comprendía todavía su propia tradición desde el punto de vista exterior, sino que además, continuaba recibiendo la iniciación de los misterios; la tradición hubiera podido mantenerse así todavía durante un tiempo más o menos prolongado en un contexto cada vez más restringido, pero esto está fuera de la cuestión que consideramos aquí ya que tratamos de Occidente en general, para quien el Cristianismo tuvo que reemplazar las antiguas formas tradicionales en un momento en el que se habían reducido para la mayoría de la gente en meras “supersticiones ” en el sentido etimológico de la palabra» (Nota de Guénon).
4 Ver Porfirio, Vie de Pythagore, 37, Les Belles Lettres, 1982, pág.53
5 Fuentes :
– Martigny : Dictionnaire des Antiquités Chrétiennes, Hachette, 1889. Art. Catéchumenat, Baptème, Néophyte.
– F. Leforge: L’Initiation chrétienne dans les premiers siècles. Cahiers de Pédagogie chrétienne. Librairie Protestante, París.
6 Ver el extraordinario texto de los Stromates de Clemente de Alejandría (V, 11), citado por Magnien (op.cit. págs. 227-231) en la que el enfoque del verdadero Dios se compara a la iniciación de Epoptia. Referirse a II Pedro 1, 16 : … nos hemos convertido en EPOPTAS (epoptai) la grandeza de J.C. En Eleusis, la Epoptia era el grado de iniciación que venía después de los Grandes Misterios; la palabra significa contemplación (Ver Magnien, op. cit. pags. 225-237).
7 F.Cumont : Les Mystères de Mithra – Lamertin, Bruselas, 1902, pág.141.
8 F. Cumont, op.cit. pags. 161-163.
9 El lector encontrará amplia información en la obra admirable Les Mystères d’Eleusis, de Victor Magnien, Payot, París, 1950.
10 Las Metamorfosis o el Asno de Oro, Apuleyo, ed, Iberia, Barcelona, 1984 (ver págs. 244, 245).
11 Citado por O. Briem : Les Sociétés Secrètes des Mystères, Payot, 1951, pag. 264.
12Le Sacerdoce du Fils, Fischbacher, París, 1983, pag. 66.
13 Tratado IV, 4 Les Belles Lettres, París, 1960, Trad. Festugière.
14 gegumnasmena : se trata del ejercicio de gimnasia que se realiza desnudo; podríamos traducir (con una cierta audacia) : “cuyos sentidos han sido desnudados”.