MAÇONARIA – UM ENSAIO FILOSÓFICO
Este trabalho é uma breve apresentação do livro de Léo Apostel – A MAÇONARIA, UM ENSAIO FILOSÓFICO, prefaciado pelo Ir Morivalde Calvet Fagundes, Presidente da Academia Brasileira Maçônica de Letras do GOB e editado pela A TROLHA em 1989.
A estrutura da obra é composta por um comentário sobre o método utilizado no livro; uma análise das abordagens: sócio-histórica, hermenêutica e uma terceira à luz de três teorias caras ao autor: a psicanalítica, a marxista e a estruturalista; em seguida o autor discute a posição de alguns filósofos iniciados na Maçonaria e finaliza apresentando algumas conclusões a guisa de proposta.
O trabalho, a meu ver, apresenta dois grandes motivos de interesse: primeiro, é uma das raras análises verdadeiramente rigorosas, do ponto de vista científico, da Maçonaria como filosofia e como práxis; segundo, é uma fonte de compreensão dos vários problemas sentidos no cotidiano das Lojas, como os conflitos, as dissenções e as desistências, pois revela as contradições internas da instituição, inerentes ao seu caráter social e histórico. Neste segundo aspecto, denuncia – tanto nas linhas quanto nas entrelinhas – a atitude tão comum às instituições confessionais (seja a Maçonaria sejam as Igrejas) de “enfiar a cabeça no buraco” para não se confrontar com uma prática contraditória que não raro se choca com a postura idealista e idealizante da doutrina. A alienação (no sentido de não enfrentamento do real vivido) é o grande mecanismo de defesa das instituições morais e, como mostra o autor, seu primeiro paradoxo, pois se propõe a buscar a verdade tendo como instrumento uma superestrutura que é construída para não discuti-la.
Essa contradição, aliás, já se manifesta na apresentação feita pelo Ir Fagundes, que propõe a obra para publicação por ser “…um trabalho de fôlego, com uma imensidade de informações e uma abrangência jamais alcançada por outro filósofo maçônico, em todos os tempos…” embora (sic) não esteja afirmando “que o estudo tenha sido completo e o assunto esgotado”. Mas por que tal obra é, ao mesmo tempo, tão completa e tão incompleta? Porque não se assemelha às do “…confrade Carvalho Neves, de Teresina, acompanhado de longe pelo confrade Fernando Fagundes” (p.5) ou porque propõe “…aperfeiçoamentos, o que, realmente, não tem nada com filosofia, mas se trata de política administrativa. Foge do assunto” (p.6). O viés político das ressalvas não só salta aos olhos como ainda serve de melhor exemplo das teses defendidas no livro.
A questão que anima o autor surge da constatação de que a Maçonaria é uma tentativa de promover o encontro íntimo de indivíduos social, psicológica, ideológica e emocionalmente diferentes e, daí, a pergunta: será realmente possível e válido tal empreendimento? Já na Introdução, o autor confessa sua adesão ao ideal maçônico e sua convicção de que “a tensão é eterna e, no entanto, é também eterna a vontade de compreensão e de fusão interior” (p.12).
Essa postura faz da obra uma análise crítica positiva da práxis maçônica e não, como pode parecer ao leitor mais apressado, uma crítica ao ideal maçônico. É mais uma tentativa de aperfeiçoamento, o que é inerente ao próprio ideal, do que uma ameaça. O aperfeiçoamento passa, sim, também por razões e transformações políticas e a não compreensão disso só pode resultar numa postura conservadora e, conseqüentemente, oposta à busca da verdade que pretendemos como ideal.
II
A análise começa com a fundação, em 1917, da primeira superestrutura política da Maçonaria por Joseph Theophile Desaguliers e com as inevitáveis perguntas: “o que havia de especial na Inglaterra em 1717?” e “quem era Desaguliers?” (p.21). As duas respostas têm muito em comum: um pastor protestante, admirador de Isaac Newton e seu divulgador, imigrante francês e vítima da intolerância religiosa, vivendo num contexto que perdia sua unidade ideológica pelo conflito social intenso numa sociedade que lidera as transformações mundiais do mundo novo capitalista.
Nessa civilização, as relações humanas se tornam impessoais e contratuais e a intensa divisão social do trabalho revoluciona os hábitos e a cultura tradicionalmente humanistas, sem que haja já um sistema de valores prontos para ocupar os vazios que vão se formando nos espíritos.
Mas que grupo de homens era esse que buscava tão ansiosamente um novo equilíbrio psicossociológico que atenuasse o sofrimento de suas contradições interiores? “…o grupo era composto por cavalheiros suficientemente ricos, de boa reputação, leais à coroa e às leis da nação. Estavam, evidentemente, excluídas as mulheres, os negros, os criados e os escravos, os aleijados e os ateístas professos e os revolucionários” (p.22). Esse grupo de “reformadores conservadores”, nesse contexto histórico, buscava um ideal de “homem universal” e “uma religião comum a toda humanidade” que se constituíam em “úteis mentiras” para conciliar opostos irreconciliáveis (p.22), isto é, a tentativa de superar a alienação das relações sociais capitalistas que se instalavam. Um núcleo de união que transcenda as distâncias sociais, só pode existir se for contra qualquer impulso de transformação radical e se torne o “…pote de fusão, [idéia] tão bem representada pelo notável diplomata maçônico Benjamim Franklin” (p.26).
Dentro dessas condições, o desejo de um núcleo universal “…gerava concepções diversas do mesmo, bem como da estratégia necessária à sua realização” (p.28). São os antagonismos inerentes ao próprio conflito mundial do século que impossibilitam à fórmula maçônica reeditar seus primitivos sucessos.
Passando do contexto ao texto, Apostel efetua uma análise hermenêutica da Maçonaria, confrontando seus significados literal, alegórico, analógico e místico, já que, em toda parte, “…as reuniões das Lojas são encerradas e abertas usando-se as mesmas palavras e gestos ritualísticos. Os templos maçônicos têm aspecto similar…” (p.35) e os rituais de Iniciação apresentam estruturação semelhante.
Um símbolo, na definição do autor, é “…um objeto, uma propriedade, um processo ou uma pessoa capaz de evocar, em quem o contemple…” uma multiplicidade de significados intelectuais e parcialmente emocionais, suficientemente imprecisos para serem passíveis de várias interpretações, mas dentro de limites que não permitam a interpretação puramente arbitrária (p.36). “Os símbolos maçônicos estão repletos de gestos humanos de extrema simplicidade”: o aperto de mãos, os passos, o abraço e permitem a “comunhão parcialmente consciente e parcialmente inconsciente de diferentes mentes e emoções” (p.37). Nesse aspecto, o autor afirma que (embora possa ser talvez impossível) a Maçonaria é a tentativa, dentro de uma sociedade não mais tradicional, de criar uma iniciação que seja uma verdadeira emancipação.
Em sua análise hermenêutica da simbólica maçônica, o autor acentua o aspecto de oposições dialéticas no Templo e nos rituais, da luz e da sombra, do norte e do sul, do preto e do branco, dos dois guardiões, do Oriente e do Ocidente, opostos que “…se encontram, coexistem e se tocam, mas nunca se dissolvem um no outro, nunca vencem o antagonismo e nunca se transformam sinteticamente” (p.40). Aqui o autor afirma ver na Maçonaria “…um contra-movimento para a unificação da humanidade” onde o “…homem ocidental se revela a si mesmo (recebe a luz), por vir a se considerar o Realizador, o Transformador, e a compreensão é o seu êxtase” (p.42). É o grande fruto da razão. “Vemos aqui, realmente, que a Maçonaria é o misticismo de uma sociedade de trabalhadores, em uma sociedade tecnológica” (p.43). Ao dizer que “a unidade maçônica é o segredo de que não há segredo, porém segredo dos que estão reunidos pela busca do mesmo, condenados ao fracasso por suas próprias mãos” [mito de Hiram] (p.45), o autor chega, neste capítulo, à conclusão de que “…o ideal maçônico encontrou, na simplicidade clássica dos três graus (…) formas e meios simples de se expressar a possibilidade de transcenderem-se todas as separações entre seres humanos” (p.47) e que a Maçonaria tem sucesso em “…demonstrar a imobilidade dentro do movimento, (…) [e] enfatizar a unidade da humanidade, mesmo no âmago da luta mais dramática…” (p.45).
No capítulo VI, o autor busca uma análise “externa” , como ele mesmo diz, tentando uma interpretação à luz da psicanálise, do marxismo e do estruturalismo. Nesta parte ele analisa os três graus filosóficos em função de seus rituais e mitos. Esta análise, embora atraente por sua novidade, passa a ter um interesse meramente epistemológico, já que pressupõe uma tomada de posição intelectual e, conseqüentemente, ideológica. De certa forma, fazer a análise psicológica e sociológica do discurso e da práxis maçônica é importante, embora implique em fazer uma redução do assunto a um círculo mais interessado na perspectiva metodológica, a que deixo a leitura da própria obra, já que o autor buscou neste capítulo principalmente um reforço adicional a seus argumentos filosóficos.
Após abordar as influências dos principais filósofos ligados à Maçonaria, como Lessing, o romântico Herder, o político Fichte, o artístico Goethe, os sociológicos Krause e Proudhon, o autor constata em todos um viés comum: tanto o prenúncio das divisões que a Ordem viria a sofrer futuramente, quanto o esforço pela superação das desigualdades humanas. Após demonstrar o valor da discussão desses filósofos, o autor critica, ao final deste capítulo, o idealismo místico dos poucos filósofos do século XX que trataram do tema, como Wittgenstein e Heidegger, principalmente pelo seu aspecto mais emocional que racional.
Apostel vê na abordagem sistêmica uma possibilidade rica de, modernamente, se compreender a Maçonaria. Citando o sociólogo sistêmico Niklas Luhman, dir-nos-á que “…quando quer que se desintegrem sistemas [como a sociedade tradicional face ao surgimento do capitalismo: nota do resenhista], são feitas tentativas para formação de subsistemas, procurando reintegrá-los; estes subsistemas, encontrando a hostilidade das tendências prevalecentes, são forçados a se proteger por meio de um certo grau de segregação. Como ainda não podem antecipar a forma de uma futura reintegração, estes podem ser levados a assumir as formas exteriores de integração anteriores, deixando, porém, o conteúdo em aberto, a ser preenchido, individualmente, por diversos participantes” (p.111).
Com esta explicação, Apostel permite a compreensão tanto da “tolerância” maçônica quanto da abertura dos símbolos a múltiplas interpretações, já que estas duas qualidades estruturais permitem a convivência dos diferentes, antecipando “a utopia ética de Kant do ‘reino da liberdade e paz’” (p.113) em uma Loja que idealmente possibilita a desejada sociedade solidária.
Termina esta parte por discutir a obra de Roscoe Pound, o único filósofo maçom americano moderno a quem diz conhecer, enfatizando a necessidade de maior diálogo entre as várias “filosofias” maçônicas, postulando que as diferenças das várias correntes parecem resultar mais da falta de conhecimento do que de divergências irreconciliáveis. Também aqui Apostel me parece um crítico otimista em relação à Maçonaria!
No capítulo VIII, última parte do livro, pretende alinhavar algumas conclusões práticas, fazendo, como ele mesmo diz, com que o filósofo volte à terra e reassuma-se como maçom ativo.
Considerando que a Maçonaria foi extremamente feliz em permitir a superação da nobreza e burguesia e tendo possibilitado a transcendência das divergências religiosas no passado, hoje ela tem sido impotente para superar as diferenças entre classes sociais, entre sexos e culturas. Isso, entretanto, como ele diz, não “constitui uma catástrofe”, já que não diminuem as várias obras da Maçonaria no campo profano.
Contudo, visando o aprimoramento do ideal maçônico, Apostel propõe à discussão algumas medidas práticas, estruturalmente necessárias para a consecução daquele ideal, das quais destaco as mais polêmicas:
1. A Ordem deve deixar de ser uma sociedade “secreta” para ser apenas uma sociedade fechada, significando que seus membros devam ser conhecidos e socialmente comprometidos com os ideais maçônicos;
2. os recrutamentos baseados apenas em conhecimento e amizade devem cessar, criando-se uma forma mais impessoal de recrutamento e seleção;
3. os custos devem ser drasticamente reduzidos para permitir o acesso aos indivíduos menos ricos, mesmo que isso custe o fim dos dispendiosos banquetes;
4. nenhuma ação pública deve ser empreendida em nome da Maçonaria, pois ela deve continuar sendo o local onde “é possível aos seres humanos de todos os credos (éticos e políticos), de qualquer cultura ou nacionalidade, de qualquer estilo ou temperamento, encontrarem-se como simples seres humanos” (p.124);
5. sem se publicar detalhes do simbolismo, do ritual ou da Iniciação, deve-se tornar público a essência histórica e o ideal da Maçonaria;
6. a Instrução, essencial à Maçonaria, deve ser mais cuidada e mais aprofundada em estudos e debates filosóficos, psicológicos, sociológicos e históricos que envolvam a todos os membros; disso decorre que o recrutamento deve ser mais vagaroso a fim de se permitir uma melhor formação dos membros e uma assimilação mais perfeita da doutrina;
7. entre outras coisas, o iniciado em potencial deve ter um forte compromisso com algum objetivo maior impessoal, seja artístico, seja intelectual, seja político, seja desportivo, etc.;
8. para ser um iniciado em potencial deve-se ter a capacidade de mudar e de crescer, mesmo que isso signifique defender pontos de vista impopulares;
9. a fim de preservar o estímulo espiritual fornecido “pelos poucos graus superiores dignos de serem alcançados – refiro-me primeira e principalmente ao 18 e ao 30” as ligações entre Maçonaria Azul e Maçonaria Vermelha devem ser distanciadas o mais possível;
10. todas as organizações centrais das diversas Obediências (Grandes Orientes e Grandes Lojas) devem ser eliminadas e substituídas por uma rede de associações de Lojas, pois estas são os verdadeiros “blocos de construção” da Maçonaria;
11. finalmente, as Lojas devem se reunir com a mesma freqüência e profundidade em todos os três graus, pois suas mensagens devem ser igualmente aprofundadas e sentidas.
O autor apresenta duas observações que considero como fechos de sua reflexão – uma política e outra profundamente maçônica. Quero concluir com esta última que, me parece, toca mais ao espírito de Apostel: “Para o maçom, constitui um perigo a auto-suficiência; aquele que clama por iniciar, seguidamente fica tentado a se julgar a si mesmo como iniciado. Esse perigo se reconhece através das palavras: o Mestre se autodenomina ‘aprendiz eterno’; entretanto, porque não poderia ‘solicitar uma segunda Iniciação por ter-se modificado, tornando-se uma nova pessoa? (…) Sem dúvida essa prática seria difícil e árdua, porém existe alguma coisa mais difícil e árdua do que a Maçonaria, compreendida em profundidade?” (p.130).