Apostel, como vimos no trabalho anterior, deixou clara a impossibilidade de, por mero idealismo, transcendermos às contradições inerentes ao contexto social em que vivemos, já que somos condicionados por essas contradições. Mas também foi otimista quanto à possibilidade de criarmos um núcleo de convivência onde aprendamos rudimentos dessa transcendência, de modo a plantarmos a semente de um mundo melhor. A Filosofia da Real Arte tem visto na Tolerância o instrumento por excelência dessa possibilidade.
A Tolerância é, portanto, o substrato da possibilidade de uma vivência maçônica. De que outra forma se poderia pretender a convivência entre homens social, política e ideologicamente diferentes?
Mas como podemos conceber a Tolerância se a pensarmos em relação a uma pretensa verdade? Posto de outra forma: se existir uma verdade positiva, demonstrável, irrefutável, como podemos aceitar a Tolerância? A Tolerância, então, se constituiria uma forma de piedade em relação a alguém menos consciente, menos evoluído, menos ilustrado ou menos iluminado do que nós, os tolerantes? Se adotarmos essa perspectiva, então nossa Tolerância não passa de uma forma de prepotência disfarçada em caridade e nosso discurso maçônico não é mais que um mecanismo de ocultação dos nossos preconceitos.
A existência da Verdade é um pressuposto necessário à nossa caminhada em busca de maior consciência, de maior conhecimento, enfim, do nosso desenvolvimento como seres humanos. Como seres em processo, contudo, certamente jamais atingiremos a plenitude da Verdade ou mesmo da Humanidade, posto que nosso modelo de ser está sempre projetado no futuro. Essa condição deriva necessariamente de nossa finitude.
Na dialética de nossa existência, temos a humana necessidade de transformar cada momento de nosso processo de vida em uma totalidade, buscando, assim, conseguir algum equilíbrio na vertiginosa viagem que é viver. Colocando em termos práticos: embora nossas verdades sejam relativas, dependentes do tempo, do espaço e das condições que possuímos para elaborá-las, tendemos a tratá-las como se fossem A Verdade e as brandimos como verdadeiras armas contra tudo e todos. Em nome de nossas verdades nós julgamos, criticamos e condenamos. Em nome delas, também, adotamos ares de complacente tolerância. Em defesa de nossas verdades, desfilamos argumentos filosóficos, científicos e éticos, construindo discursos aparentemente bem sólidos. As Teologias e as Ideologias correntes servem como bons exemplos disso.
Mas a que nos conduz esse raciocínio? À defesa de uma posição relativista, onde, ao postular que qualquer verdade é A Verdade, acabamos por concluir que a Verdade não existe? É claro que não! Dizer que as nossas verdades são relativas não é o mesmo que adotar uma posição relativista. Estamos apenas admitindo que as nossas verdades devem ser consideradas como aproximações d’A Verdade, que será sempre totalmente inatingível. Essas aproximações, embora relativas, possuem, contudo, uma parte dessa Verdade que buscamos e, por isso, não se constituem absolutamente Inverdades. Nossas crenças, por exemplo, mesmo não sendo o mais das vezes demonstráveis, para nós são verdadeiramente reais: por elas vivemos, choramos, lutamos e, não raro, morremos.
Admitir nossa humanidade finita e limitada, nos conduz a admitir, por conseqüência, que somos seres contraditórios. Embora na maior parte do tempo não tomemos consciência disso, a contraditoriedade é nossa real condição. A cada dia, vivemos um dia a mais ou um dia a menos? Nascemos para viver ou para morrer? Para caricaturar: um robô, em sua lógica binária, maniqueista, não entenderia, por exemplo, “chorar de felicidade”, “morrer de prazer” ou “pancadas de amor”.
Mas será essa relatividade logicamente defensável? A ciência, por exemplo, não demonstra verdades inquestionáveis?
No caderno Mais! da Folha de São Paulo de 30 de novembro último, há uma série de artigos referentes ao trabalho do professor Newton Carneiro Affonso da Costa, filósofo e matemático paranaense, professor da USP e mundialmente reconhecido por seu trabalho em Lógica. Rompendo com a lógica “clássica”, aristotélica, assentada há mais de 2000 anos no princípio da não-contradição, o professor Newton formulou em 1963 as bases da lógica paraconsistente, uma lógica que admite contradições.
A Lógica “é o estudo dos processos pelos quais certas sentenças ou proposições podem ser deduzidas de outras”, ou seja, é o processo estruturante de nossos argumentos. Para a lógica clássica, o princípio básico é o da não-contradição. Por exemplo: não posso dizer que, ao mesmo tempo, “isto é um ovo” e “isto não é um ovo”. Em nosso dia-a-dia, nos diz o professor Newton, é assim que as coisas são. “Mas acontece que quando diferentes campos da ciência evoluem e se tornam mais complexos, as contradições aparecem. Na Física, por exemplo, as partículas atômicas, em determinadas circunstâncias, não se comportam como partículas, mas como ondas. Isso significa, sob certos aspectos, que elas são e não são partículas”. Também a mecânica quântica e a teoria da relatividade possuem incompatibilidades. Mas ambas funcionam.
Nessa linha de raciocínio, o professor Newton forjou a noção de quase-verdade. “Para fixar a idéia – continua ele – consideremos o caso da mecânica clássica newtoniana (…). Como a relatividade de Einstein mostrou, ela não se aplica, por exemplo, ao caso de corpos muito pesados ou de velocidades muito altas, próximas da velocidade da luz. No entanto, guardados certos limites, e em determinados domínios, como na engenharia usual, tudo se passa como se a mecânica newtoniana fosse estritamente verdadeira. Ela salva as aparências. Ou seja, ela é quase verdadeira em um certo sentido técnico. Essa é a essência da noção de quase-verdade”. A noção de quase verdade, portanto, é importante quando aponta para uma verdade que é eficiente, “guardados certos limites, e em determinados domínios”.
Nesse mesmo caderno, como parte dos vários artigos sobre essa nova lógica, o professor francês Michel Paty aborda o que ele chama apropriadamente de Filosofia da Tolerância. Nos diz ele: “Falei de tolerância: aliás, esta se encontra presente no fundamento mesmo do novo sistema, inclusive no momento da formalização do conhecimento, uma vez que a idéia força de sua concepção da racionalidade científica é a da convivência de teorias ou representações, verificadas e até verdadeiras, cada uma no seu domínio de validade, mas que podem ser contraditórias entre si”.
O desenvolvimento da Lógica Paraconsistente nos permite colocar dois corolários da maior importância: ao nível do conhecimento humano, não há uma verdade absoluta, nem mesmo no campo da ciência; nossas quase-verdades, contudo, são reais e funcionais, respeitados certos limites e no seu domínio de validade.
A noção de domínio de validade, que permite conciliar a Lógica Aristotélica com a Lógica Paraconsistente, já que coloca as contradições como sendo mais de domínios que de conceitos, pode nos ser útil para o entendimento da questão da Tolerância. Os homens são geográfica, social e economicamente diferentes, passando, conseqüentemente, a ver o mundo sob prismas diferentes. Disso resultam as diferentes posições religiosas, políticas e – de uma maneira geral – ideológicas, com seus diferentes discursos de validação. Essas posições variadas e relativas são quase-verdades, no sentido de que são identicamente tentativas de organizar e explicar de forma coerente o universo vivido, sendo também, em seu domínio de validade, funcionais.
A Maçonaria, buscando construir um espaço onde seja possível a convivência dessas diferentes posições, intenta construir um novo domínio de validade onde os parâmetros permitam a transcendência das posições particulares para, sem perda das individualidades, possibilitar relações não conflitantes. Que parâmetros permitem tal transcendência?
Primeiro, o reconhecimento da existência de uma Verdade maior e da conseqüente relatividade de nossos conhecimentos e de nossas vivências.
Segundo, e como corolário do primeiro, a destotalitarização das quase-verdades particulares, sujeitando-as ao princípio maior de busca d’A Verdade.
Por fim, mas não de menor importância, o reconhecimento de nossa igual condição de finitude, do que decorre o sentimento de Fraternidade em todas as relações humanas.
A sabedoria de reconhecer tal condição, contudo, embora necessária, não é suficiente para criar um domínio de validade igualitário e fraterno. É necessária a força de uma ação constante que se apóie na defesa intransigente dos valores humanos e na recusa constante a quaisquer formas de preconceito ou de ameaça à liberdade absoluta de consciência. Atitudes e ações, entretanto, que deverão ser adornadas pela delicadeza e pelo respeito.
Se conseguiremos criar esse domínio de validade universal, a história dirá!