DE ENTROPIA A NEURÔNIOS:
INTUINDO A ARTE REAL
O Caderno MAIS! da Folha de São Paulo do último dia três de março[1] está, como sempre, um prato cheio de iguarias intelectuais altamente provocativas. Quem tem o hábito de saboreá-lo sabe muito bem que não exagero e nem faço propaganda.
Como ao montar um prato apetitoso, pego um pouquinho aqui, outro pouquinho acolá, às vezes misturo uma coisa à outra, mas – como manda a boa dieta – procuro aproveitar de tudo um pouco. Algo “sabe-me melhor” (alguém ainda lembra esta expressão literária?), outra coisa é mais difícil de digerir, mas tudo se aproveita.
Saídos de um caderno de variedades, devido aos variados interesses e diversos quadros de referência dos leitores, os assuntos e conceitos se organizam de maneira tão diversa na cabeça de cada um, que as figuras resultantes causariam surpresa aos autores.
Não sou exceção. Uma reportagem sobre uma proposta do físico grego-brasileiro Constantino Tsallis, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, e o artigo semanal do jovem físico brasileiro Marcelo Gleiser, sobre “A Teoria de Tudo e a Via do Meio”, foram se relacionando em minha mente de forma pouco ortodoxa, me conduzindo a refletir sobre nossa Arte Real.
A reportagem tratava do conceito de entropia. Este conceito é dos mais importantes quando tratamos de sistemas (e é possível tratar de algo que não seja um sistema?). Já Clausius (1865) afirmava que “a energia do mundo é constante. A entropia do mundo aumenta até um máximo”, apontando o fato de que em sistemas fechados a qualidade da energia degrada-se de maneira irreversível, mesmo que sua quantidade permaneça constante. A energia não é destruída, mas não consegue mais realizar trabalho. Isso é a própria definição de morte do sistema.
Se transpusermos o conceito para sistemas humanos, poderíamos supor, como hipótese, que um sistema fechado (suponha que nunca mais tenhamos ingresso de novos membros em nossa Ordem) tenderá fatalmente a um estado de entropia máxima, enrijecendo-se e não conseguindo mais produzir trabalho. Seria sua morte.
O conceito acima é o conceito de entropia dentro do marco da Termodinâmica, como enunciado em seu Segundo Princípio (proposto por Sadi Carnot, em 1850).
A Teoria Estatística também conceitua entropia. É desse ponto de vista que trata a reportagem da Folha. Para a Teoria Estatística, na definição de Boltzmann-Gibbs – nos diz o artigo -, “a entropia de um sistema está relacionada ao número de situações em que seus constituintes microscópicos podem ser encontrados. Essas situações são chamadas de microestados. As muitas maneiras de distribuir a energia entre as moléculas da água colocada em um copo, por exemplo, são os microestados do sistema, Quanto maior o número de microestados disponíveis, maior a entropia. Um sistema totalmente organizado, com apenas uma situação possível para seus elementos constituintes, tem entropia nula. Por outro lado, a entropia de um sistema totalmente desorganizado é máxima”.
Misturemos um pouco, após esse conceito, com vagar, os ingredientes do prato que estamos montando.
Minha ignorância em Física me permite dizer sem cair num grande ridículo que o conceito do Segundo Princípio da Termodinâmica é “facilmente” compreendido. Se um sistema atinge a entropia máxima, sua produção de trabalho é nula, ele se estagna, sua evolução acaba e ele está morto. Mas o marco da Teoria Estatística me permite alargar essa noção: do ponto de vista estatístico temos duas possibilidades de estagnação do sistema. Uma, quando a entropia é nula, pois nesse caso “com apenas uma situação possível para seus elementos constituintes” o sistema está “esclerosado” e caminhará para uma situação de impossibilidade de produzir trabalho. Se considerarmos que esse sistema é aberto (encontra-se interagindo com um ambiente), o sistema acabará impossibilitado de responder às situações-problema que lhe são colocadas pelo meio. É o caso de algumas instituições seculares que clamam por “renovação”, engessadas pelo excesso de rigidez. Outra, quando a entropia for máxima, pois nesse caso – de desorganização absoluta – podemos aceitar a hipótese de que por excesso de desordem a força de atração entre suas partes constituintes não será suficiente para manter a identidade-unidade do sistema.
Neste ponto, como o pano de fundo de minha reflexão é humanística e não física, minha mente ilustra minhas hipóteses sugerindo que um fundamentalismo rígido, de um lado, tanto quanto um liberalismo laissez-faire, de outro, acabam por impossibilitar o funcionamento dos sistemas. A possibilidade de mudar (produzir trabalho), de evoluir, de responder às problematizações do ambiente, é que define a vida de um sistema. Define sua vitalidade.
É aqui que meto a colher na matéria de Tsallis. A novidade de sua proposta é que “(…) em muitos fenômenos da natureza que são ‘democráticos’, as probabilidades entram com o mesmo peso, elevadas à potência 1. Mas existem outros fenômenos, de natureza ‘aristocrática’. Neles, eventos raros podem ter uma influência maior que eventos comuns. Assim, as probabilidades devem ser elevadas a uma potência q diferente de 1, ou seja, devem ser potencializadas. Algumas diferenças importantes distinguem as duas entropias. A expressão usual tem a propriedade aditiva, ou seja, a entropia de um sistema constituído de duas partes é igual à soma das entropias de cada parte tomada isoladamente. Na expressão de Tsallis, essa propriedade não se verifica (exceto quando q for igual a 1)”.
Já é consenso científico que nos sistemas complexos (e os sistemas sociais estão entre os mais complexos) o todo é mais do que a soma das partes, entre outras coisas porque essas partes não são equivalentes (as pessoas são essencialmente diferentes). Agora, se aceitamos a proposição de Tsallis, temos que considerar a hipótese de que, sendo as pessoas também qualitativamente diferentes (o que na área social é facilmente demonstrável), as ações e opiniões de algumas pessoas se apresentam com uma potência maior que a de outras (diferentes de 1, na conceituação de Tsallis) e isso faz com que o sistema (a) tenda a “produzir mais trabalho” (aumentar a intensidade de sua atividade) e (b) tenda a orientar-se no sentido de sua força maior (de maior potência).
Até aqui, parece que apenas complicamos o óbvio, pois todo mundo não sabe que “as pessoas importantes são mais influentes”, “o exemplo de cima é mais forte que o de baixo”, “quem tem poder manipula as opiniões”, e coisas que tais?
Bem, se não fosse suficiente por si só a beleza da isomorfia entre esses conceitos físicos, matemáticos e sociais (e a Beleza é um de nossos Valores), a questão da entropia ainda remete a questões maiores, teleológicas: estão fadados o Universo (perguntam-se os físicos) e os sistemas sociais (perguntam-se sociólogos e filósofos) ao desaparecimento por entropia? Existe a possibilidade de construirmos sistemas (perguntam-se, além daqueles, ecologistas, politicólogos, economistas, teólogos – e maçons) qualitativamente melhores, mais evoluídos, mais Humanos?
Qualquer sistema se define pela interação de seus componentes. Esse truísmo remeteu (e é difícil crer que levou tanto tempo a fazê-lo) à Teoria da Informação, ao campo da Comunicação, áreas que são causas-conseqüências do campo da cibernética e que estimularam maravilhosos insights na nova Biologia e na nova Física. E a Teoria da Informação também se ocupou do conceito de entropia. Leon Brilloouin (nos anos quarentas) estabelece uma equivalência entre o conceito de entropia negativa (que designou neguentropia) e informação. Segundo ele, a informação trazida por uma mensagem ou um acontecimento é tanto maior quanto sua probabilidade de acontecer seja mais fraca. Ou seja: quanto mais raro o conteúdo da informação, mais forte ela será.
Von Bertalanffy aplicou o conceito a sistemas abertos, postulando que esses só vencem a entropia sendo abertos ao meio ambiente, o que lhes permite aumentar o nível de organização e ordem.
L. Prigogine, um importante químico, demonstrou que, não longe do equilíbrio, um sistema se mantém estável, compensando um mínimo de entropia com o intercâmbio que faz com o meio. O sistema passa a sediar processos não-lineares de interação fazendo o sistema evoluir para regimes qualitativamente diferentes dos estados definidos pelo mínimo de entropia. É o conceito de “equilíbrio instável”, a demonstração da possibilidade do movimento de evolução em espiral rumo a níveis cada vez mais complexos (“desenvolvidos”). A esse processo denominou Estruturas Dissipativas.
Com esses elementos (quase digo alimentos) em mente, li o artigo de Marcelo Gleiser.
Fazendo a crítica dos reducionismos científicos – as tentativas de encontrar uma “teoria de tudo” que explique todos os fenômenos -, ele nos diz “que esse projeto, mesmo se ele vier a ser concluído um dia, será inútil na descrição de fenômenos onde comportamentos complexos surgem espontaneamente, ‘ordem vinda do caos’. (…) Por exemplo, se o neurônio é o ‘átomo’ do cérebro, é impossível deduzir o funcionamento do cérebro a partir do funcionamento de alguns de seus neurônios. É em seu comportamento coletivo que os neurônios geram o que chamamos de pensamento”. Ou seja: os sistemas, sendo e tornando-se cada vez mais complexos, não têm um “destino” que possa ser previsto. Sabemos, sim, que há a possibilidade de “evolução” e que ela depende da ação dos componentes do sistema. Não temos, porém (e graças a Deus), a possibilidade de construir sistemas à “nossa imagem e semelhança”. O imponderável tanto exige nossa participação ativa, a fim de que o resultando final não seja o pior, quanto reserva o espaço à ação seja do “destino”, seja do “acaso”, ou seja do demiurgo que denominados GADU. Questão de convicção.
Quando finalmente saboreamos a mistura que cuidadosamente fizemos em nosso prato, o sabor final nos induz a algumas conclusões que merecem a reflexão de tantos quantos estão interessados na Arte Real:
1. Todo sistema, se não se renova pela introdução de elementos novos, tende a imobilizar-se por fechamento, atingindo mais rapidamente o ponto de perda qualitativa de suas forças e ameaçando-se de extinção.
2. A mesma conseqüência se dá quando o sistema tende aos extremos contrários – ou à ortodoxia rígida ou à “atualização” descontrolada- pois, ou se enrijece num ponto de entropia nula ou atinge um grau de desorganização que é de máxima entropia.
3. A introdução no sistema de elementos qualitativamente diferenciados tende a potencializar (segundo Tsallis) a intensidade e a direção das mudanças. Isso significa que temos que refletir seriamente sobre a necessidade de atrairmos as elites (pessoas “aristocráticas”) para a Ordem, tanto para a expansão horizontal das influências (nos quadros internos), quanto na vertical (na adequação crescente das estruturas internas) e na “diagonal” (resultante final desse jogo de forças que representa a intensidade e a direção da influência que exercerá no meio social).
4. Por conseqüência é importante que se reflita sobre o tipo de elitização que pretendemos na Arte Real: uma elitização econômica; uma moral; uma científica; uma espiritual? Uma qualificação que equilibre o melhor desses Valores? Que qualidades queremos potencializar?
5. Sendo um sistema complexo (como qualquer sistema social), ninguém terá jamais controle (ou certeza) sobre a orientação final do sistema. Isso é bom, pois por um lado nos tornará mais humildes, pois não teremos jamais a possibilidade de “criar” um sistema social segundo nossas idealizações, e, por outro, mais tolerantes, pois que todas as linhas de evolução poderão nos conduzir ao resultado final que, em última instância, jamais atingiremos.
Espero que o sabor final deste prato, se não satisfizer ao gosto de cada um, ao menos não seja de todo intragável.
[1] 2002.