A PROVIDÊNCIA E O LIVRE ARBÍTRIO
Está escrito que nem uma folha cairá de uma árvore sem que seja a vontade de Deus. Essa afirmação está repetida várias vezes, de diversas maneiras, desde o Velho Testamento (Jó 5.6.17-18. Prov 5,21. 16,9. 19,21) até ao Novo: “Não se vendem dois passarinhos por um asse? Todavia, nem um deles cai em terra sem a vontade de vosso Pai. Quanto a vós, até mesmo os cabelos todos de vossa cabeça estão contados” (Mt 10, 29-30).
Também está escrito, muitas vezes, em todo o Evangelho (Rom 12,21. Mt 19,21. 1Cor 10,13), sobre a necessidade de o Homem escolher seu caminho livremente, como, por exemplo, as parábolas do joio entre o trigo (Mt 13,24-30.36-43) e da figueira estéril: “Um homem tinha uma figueira plantada em sua vinha, e veio em busca do fruto dessa figueira, e não o achou. Disse então ao vinhateiro: Já lá vão três anos que venho em busca do fruto desta figueira e não o acho; corta-a; porque há de ela ocupar em vão a terra? Respondeu-lhe ele e disse: Senhor, deixa-a ainda este ano, para que eu cave ao redor e lance estrume, a ver se dá fruto; se não, cortá-la-ás depois” (Lc 13, 6-8).
Como conciliar essas duas posições? Como entender duas afirmações tão contraditórias nos mesmos textos e, segundo a fé, saídas da boca do mesmo Deus?
Ora, Deus, ao nos conceder uma de suas qualidades – a liberdade de escolha – não abriu mão dessas qualidades, que são Suas. E nem poderia fazê-lo, sob pena de deixar de Ser. Nós somos livres, sim, para escolher nossos caminhos. Toda natureza proclama a liberdade humana, em contradição com o determinismo dos outros reinos (animal, vegetal e mineral). Nós mesmos, nas mais simples observações, somos obrigados a reconhecer nossa liberdade de escolha: olhemos cada uma de nossas realidades atuais e achemos uma (se for possível) que não seja fruto de nossas escolhas anteriores. As escolhas até podem ter sido inconscientes e, inclusive, “forçadas” pelas circunstâncias. Mas sempre foram escolhas livres que fizemos.
Mas Deus, por não estar no tempo, por não possuir passado, presente e nem futuro, simplesmente SER, é consciente de todas as coisas. Por isso dizemos que Ele é onisciente. Ele SABE de nossa fraqueza, de nossos condicionamentos, de nossas circunstâncias e, portanto, sabe de nossas más opções, de nossas quedas, tanto quanto de nossas boas opções e de nossas vitórias. Isso não nos tira a responsabilidade de escolha. Vejamos um exemplo: quando um jogador de futebol dribla a defesa adversária e chega cara a cara com o goleiro, todos “sabemos” que ele vai chutar em gol. Ninguém pensaria que ele irá chutar propositadamente para fora. Isso, no entanto, não tira desse jogador o direito à escolha. Ele chutará, sim. Chutará porque escolheu jogar, escolheu jogar naquele time (o que o pôs em campo contra aquele outro), escolheu ganhar o jogo, escolheu, escolheu, escolheu… O fato de considerarmos “lógica” aquela escolha, não tira dela seu caráter de liberdade. O fato de “sabermos” que ela será “fatalmente” daquele jeito, ainda não tira dela esse caráter.
Mas ainda assim resta uma questão nesse problema: as Escrituras falam de que nada acontece sem ser a Sua vontade. Então não é só uma questão de “saber”, mas, sobretudo, uma questão de “querer”. Aqui entramos no campo dos “mistérios” e muitas páginas têm sido escritas sobre isso. Muitas lendas também. Para nós, com nossa natureza curiosa e insatisfeita, dizer que algo é “mistério” é uma solução que não satisfaz à nossa dúvida. Ainda assim, é real. O mistério existe. O vasto campo de coisas que ainda não conhecemos (a natureza do câncer, o porquê da calvície, a razão da hereditariedade, e milhões de coisas mais), para nós se constitui um mistério. Não estar sujeito ao Tempo e nem ao Espaço, como é da natureza do mundo espiritual, para nós é absolutamente incompreensível.
Ainda assim, Deus nos concedeu “pistas” dessa realidade incompreensível para que possamos ao menos vislumbrar a Luz. É uma fresta que, ao contrário de nos fechar a porta, nos deixa perceber que há um outro lado muito mais real do que o nosso, porque menos limitado. Vejamos isso num outro exemplo: quantas vezes nossos filhos, quando aprendendo a andar, bracinhos estendidos e olhinhos arregalados, tropegamente andavam em nossa direção e viam (horrorizados) que nós os deixávamos cair sentados. Que coisa tão incompreensível para aquelas criaturinhas já acostumadas a serem amparadas a protegidas. Contudo, nós “víamos” o que elas não conseguiam ver: que era necessário cair algumas vezes (sob segura proteção) para que aprendêssemos a correr. Outro exemplo encontramos na estória da criança que viu a larva da borboleta esforçando-se “dolorosamente” para romper o casulo que a aprisionava. Desejando fazer-lhe um bem, a criança cuidadosamente rompeu o casulo, deixando que a larva se livrasse sem nenhum esforço. Mas aí veio a decepção: a larva, impedida de ter que se esforçar e lutar por sua liberdade, tornou-se flácida e sem força. E nunca conseguiu ser uma borboleta. O mal era apenas aparente, pois, para quem conseguia VER, era o sumo bem. Pelo contrário, o aparente bem que fora feito, revelou-se, ao final, o sumo MAL para aquela criaturinha.
Em um livro maravilhoso[1], Evaristo de Miranda nos diz que o relato do Gênesis nos anuncia um paradoxo: como podemos ser imagem e semelhança de Deus ao mesmo tempo? Acostumados a entender imagem e semelhança como sinônimos, não nos damos conta de que são duas coisas não só diferentes como também opostas: a imagem é um reflexo, uma fotografia; a semelhança é uma identidade, uma potência. Assim, nos diz o autor que já os padres da Igreja, como São Basílio, ensinavam que “fomos criados à imagem de Deus, resta a nós nos tornarmos sua semelhança”. Já somos uma semente; depende de nós o desabrochar até à plenitude das nossas potencialidades.
Será por isso que a filosofia oriental nos diz que o que pensamos ser realidade é Ilusão? Será isso que o Cristo quis nos dizer, quando nos avisou de que “vós estais neste mundo, mas não sois deste mundo”?
O escultor pega o bloco de granito e, ao retirar-lhe os excessos, faz aparecer a estátua maravilhosa que estava aprisionada no bloco até que o artista a libertasse. Que estátua estava aprisionada naquele bloco? Aquela que estava no sonho do artista que a libertou. Poderia ser tanto um Apolo quanto uma Diana; tanto um santo quanto um demônio. Da mesma forma se dá conosco: somos pedras brutas das quais, retirando os excessos, libertaremos a imagem que está aprisionada nela. Poderá ser um Homem ou um animal, um santo ou um demônio. Dependerá do nosso trabalho paciente e constante, da força do maço e da precisão do cinzel. Mas dependerá, ao final, sobretudo, do tipo de sonho que cultivamos a nosso próprio respeito.
Fiat lux!
[1] Corpo – o território do sagrado, de Evaristo Eduardo de Miranda, Edições Loyola, São Paulo, 2000.