O CICLO DO TEMPO
Ou: Retorno da “Maçonaria Operativa”.
As associações de profissionais surgiram no início do Império Romano, em aproximadamente 700 a.C., com os Collegia, que acompanhavam os exércitos, também conquistando o mundo, embora através de suas construções.
Com o início do Feudalismo, a proibição de livre deslocamento obrigou os remanescentes dessas associações a se abrigarem nos conventos, sob a direção de arquitetos clérigos, cujos nomes marcaram a história: os bispos de Tours, Limoges, Rodez, Chalon-sur-Saône, entre tantos outros.
Com a especialização crescente, paralelamente a essas surgiram associações leigas que, além das preocupações profissionais, se dedicavam à caridade e à solidariedade, ainda se mantendo sob a égide de um santo padroeiro. As guildas foram, no século VII, um exemplo dessas associações.
O trabalho especializado exigia o conhecimento de técnicas, que eram conservadas sob segredo e juramento a fim de defender a associação e de realizar uma “reserva de mercado” do mestre. O conhecimento especializado já era, naquela época, um bem de capital. Técnicas de extração de minério, fundição, solda, fabricação de ferramentas e instrumentos de medição, exigiam vastos conhecimentos profissionais e científicos (matemáticos, químicos, geológicos) cujos segredos eram transmitidos com reservas e mediante formas cifradas e alegóricas que evitassem a sua fácil apropriação.
Era a existência do segredo e a livre associação de seus membros que assustava os monopolizadores da consciência daquela época, como a Igreja, e os monopolizadores do poder político, como o Estado. Isso acabou por colocar essas instituições sob suspeita e, não poucas vezes, sob proibição explícita e perseguições físicas: a destruição dos Templários, por Felipe, O Belo, com a conivência do Papa Clemente V; a condenação das Confrarias pelo Concílio de Avignon, em 1326; a proibição, pelo Parlamento Inglês, das associações de pedreiros em 1360, e assim sucessivamente, até as proibições à Maçonaria Especulativa feitas pelos regimes nazista, fascista e comunista.
No século XIII, aproximadamente, veio a surgir a Compagnonage, na França, com um caráter revolucionário em relação às outras formas de trabalho: as guildas de corporações eram organizações hierárquicas, e vir a tornar-se mestre, nelas, era uma rara possibilidade (daí o porque da morte de Hiram); a Compagnonage, ao contrário, era uma associação de Companheiros que visava defender-se contra os interesses patronais e assegurar o monopólio do mercado. Associação secreta, ritualística, na festa do seu santo padroeiro queimava seus papéis e bebia as cinzas no vinho da comemoração, para evitar que seus segredos fossem invadidos.
Ainda hoje existe essa associação, com o nome de Companheiros do Dever, na França, abrangendo mais ou menos 30 ofícios.
A revista Reader’s Digest publicou um artigo sobre ela, com o título “Mãos que moldam o mundo”.
Jean Wiart, que ajudou a restaurar a tocha de cobre da estátua da Liberdade, construiu a torre da Igreja Presbiteriana da 5ª Avenida e fabricou, à mão, os portões e corrimãos de ferro forjado das casas de Ralph Lauren e Madonna, diz que, para um compagnon, “ir para o trabalho nunca significa em esforço. Quando mais difícil e complexo for o caso que tivermos nas mãos, mais estimulados nos sentimos”.
No século passado os compagnons eram tão importantes que obrigavam patrões a fecharem as portas, boicotando suas atividades, e ninguém se atrevia a furar uma greve decretada por eles.
Hoje, a associação prepara jovens em vários ofícios, desde a fabricação de chocolates até a restauração arquitetônica. Ajudou a furar o novo Túnel do Canal, a construir a nova pirâmide do Louvre e a fabricar o foguete espacial Ariane. O que a une é a idéia de que o trabalho manual é uma vocação nobre.
Na porta de uma de suas oficinas, lê-se: “o trabalho de tua mão ensina-te o valor das coisas da terra”. A formação de um compagnon é de altíssima qualidade e é, ainda hoje, quase um passaporte para o futuro.
Os Compagnons ainda mantêm a transmissão oral de seus conhecimentos. Os seus aprendizes estudam anos sob a direção de mestres diferentes, em várias cidades, a chamada “volta à França”, viagens que seus aprendizes realizam no processo de especialização de seus conhecimentos. Nós as realizamos simbolicamente, com o mesmo significado.
Finalmente, após esses anos de estudo, devem apresentar um chef-d’oeuvre (obra-prima) a fim de diplomar-se e serem considerados mestres.
A associação mantém uma rígida formação moral de seus aprendizes e o candidato só é aceito se for julgado “um jovem motivado, modesto, que aceita críticas, paciente e persistente”. Só se seu perfil é correto ele é aceito como aprendiz.
As guildas colocam seus aprendizes em empresas para aprender os rudimentos da profissão, pela metade do salário, e, após dois anos, se aprovados, iniciam seu tour pelas oficinas especializadas da associação, coisa que leva de seis a oito anos. Patrick Kalita, mestre, hoje instalado (sic) em Montreal, pergunta: “de que outra maneira poderia ter viajado assim, adquirido tanta experiência, encontrado tão boa gente e aprendido como funciona o mundo?”.
As guildas são fechadas ás mulheres, pois do contrário, diz um autor francês, “o tempo livre tradicionalmente dedicado à pesquisa e ao trabalho pessoal seria usado de maneira diferente”.
Cada casa da guilda, entretanto, é dirigida por uma mulher, a Mére, muitas vezes mulher de um Compagnon estabelecido, que garante a boa ordem da casa, as refeições e a moral. Na sala de jantar, à vista de todos, estão as regras da casa, que incluem a proibição de “empregar expressões grosseiras, criticar quem está ausente, sujar a mesa ou o chão”.
A obra-prima de conclusão de curso é apresentada a um júri de Compagnons veteranos e “os candidatos integram nela complexidades de estrutura e concepção, tornando o projeto o mais refinado possível”.
Depois de aceito o projeto, o novo Compagnon recebe um nome cerimonial e um bastão de junco com uma maçaneta ornamental de chifre, marfim, prata ou madeira, gravado com os emblemas da profissão, o nome e a data em que foi aceito pela Confraria. Nos casamentos, os bastões são cruzados para os noivos passarem sob sua abóbada e, quando alguém morre, o bastão pode ser levado no caixão.
Todos os ofícios possuem um santo padroeiro e muitos dias tradicionais de festas, onde se cantam as canções tradicionais da guilda.
Os Compagnons restabeleceram uma qualidade ética e profissional que estava quase extinta.
Muitas reflexões sobre a vida atual e as profissões podem ser feitas a partir desse estilo de encarar o trabalho e a vida, como obras de arte. Uma, que me parece importante, é que a Maçonaria teve a estrutura de composição de suas lojas mudada, mas não a essência de sua missão. Em seus princípios, as lojas reuniam artesãos que se dedicavam ao mesmo ofício e que buscavam a mútua proteção e o aprimoramento profissional, sob a forma de uma ética rigorosa, o que os tornou tão exemplares enquanto organização que acabaram por atrair a atenção e o interesse de sábios, estudiosos, místicos e líderes sociais de toda ordem, o que acabou resultando na formação da moderna Maçonaria especulativa. Hoje, nossas lojas reúnem profissionais dos mais variados ramos, o que as torna culturalmente ainda mais ricas, devido à interdisciplinaridade, e potencialmente mais fortes, devido à variedade de seu espectro sócio-político.
Sua missão, contudo, continua a mesma. Nossa pedagogia sócio-política ainda é a busca da maestria individual em nossas “artes” de ofício e o desenvolvimento de uma ética rigorosa, a fim de, pelo exemplo de nossa prática, motivarmos – o que é bem diferente de obrigarmos – a transformação das práticas sociais, políticas e econômicas, em busca de um mundo que, tendo o Homem por objetivo e medida, seja cada vez mais justo e perfeito.
Como outrora, contudo, essa missão continua dificultada e ameaçada por todos os assassinos de Hiram, que se escondem mais em nossos próprios corações do que nos de pretensos inimigos.
Irmãos, aos aventais!