Uma Reação
Fantástica
Rondon levou a
tais extremos a reação do espírito sobre o seu abalado físico, que em uma das
marchas, a pé, por cima do árido Chapadão de Parecis, já muito longe, sofrendo
horrivelmente o martírio da sede, levado aos paroxismos pelo estado febril em
que se encontrava, caiu redondamente ao solo, desacordado, inerte, presa de uma
síncope!
Cercaram-no os companheiros, acudiram ao Chefe querido e estoico:
vários portadores partiram em rumos divergentes em busca de água, só encontrada
muito distante do ponto em que ocorrera o acidente. Felizmente e com a força
milagrosa de sua vontade de aço, o Chefe reergueu-se e prosseguiu a marcha
horas depois. E assim, mesmo doente, continuou o seu serviço de exploração.
Quando acidentalmente sentiu-se melhorar, a sua convalescença foi ainda
assinalada por um célebre passeio em que sobrepujou em resistência outros
companheiros que com ele seguiram, dentre os quais um deles, ao regressar ao
acampamento, teve a seguinte exclamação original:
‒ Vá ser doente
para o inferno!
[…] é fato
indiscutível ter ele adquirido de seu próprio bolso, antes de partir de
Cáceres, pelo alto preço de 400$000, um excelente boi de montaria para o seu
uso particular e que se tornou célebre nessa Expedição (Juruena ao Madeira).
Ainda mais esse animal foi mandado por ele anexar à tropa com esta designação
especial: só o Chefe poderia utilizar-se dele quando o ordenasse. Marchou a
Expedição pelo Sertão afora e, a cada sintoma de enfraquecimento físico que o
médico observava no Chefe da Expedição, insistia para que Rondon se resolvesse
a dar ordem de arrear o boi e montar. Os companheiros da exploração, no vivo
interesse de salvar o Chefe, secundavam as ponderações do médico e havia em
torno de Rondon um verdadeiro coro: “porque não montar, quando o animal ali
estava à mão e viera para esse fim exclusivo?”
Evidentemente o
estado de saúde do Chefe agravava-se dia a dia! Houve mesmo alguém mais íntimo
que lhe fez sentir o perigo de um fracasso da Expedição, se ele continuasse a
tanto arriscar e viesse a perecer! Talvez que esta última ponderação amiga
houvesse afinal vencido a resistência do Chefe; o caso é que, sob a ação dos
seus habituais 40° de febre, num dos acessos do impaludismo, mandou ele arrear
o célebre boi e montou. Andou assim cerca de quatrocentos metros apenas…
Senti-me
humilhado, diminuído, diante dos meus comandados; impossível subordinar-me a
semelhante situação e refleti que era então preferível morrer!
De repente,
olhando para trás e em torno de si, ao contemplar os seus companheiros, todos a
pé, sob o peso das mochilas, deixando ler no aspecto físico o abatimento e o
cansaço das marchas, suarentos, cobertos de pó, a sua alma vibrante e enérgica
reagiu subitamente! Apeou-se incontinenti e, com gesto autoritário e que não
admite dúvidas, mandou que conduzissem o boi para a retaguarda! E até o fim da
Expedição gozou o privilegiado boi das regalias de montada do Chefe… sem
nunca mais sentir-lhe o peso! (MAGALHÃES)
Resistência Física
A subida de um
morro, enquanto os mais moços do que ele e que tinham de idade em média 25 anos
menos, alcançavam suarentos e esfalfados a parte mais alta, depois de
interromperem o acesso para tomar fôlego, Rondon, adiantando-se de muito no
tempo despendido para a subida, que efetuara de um só arranco, ria-se dos
companheiros e dizia-lhes pilhérias a propósito do retardamento com que iam
chegando. É preciso dizer que todos se haviam empenhado em chegar primeiro, com
ardor igual ao de um desafio e de uma aposta […] Em tais reconhecimentos, era
sempre Rondon quem tomava a ponta da vanguarda. Só confiou este serviço de
máxima responsabilidade, em 1909, ao Tenente Lyra, e a experiência demonstrava
que poderoso era o auxílio do índio, não só pela resistência de infante e pela
habilidade de indicar os melhores passos no rumo desejado, como pelo
incomparável trabalho de que só o silvícola se desempenhava de modo a merecer a
absoluta confiança do Chefe: o reconhecimento militar! O índio, conhecedor por
experiência própria, de todos os planos e processos usados por outras nações
indígenas, para os ataques e surpresas, executava só o trabalho de uma boa
patrulha. Avançava sorrateiramente, sem fazer o menor ruído no mato, sempre
atento e perspicaz, agachado quando era mister, e observava a zona toda em
direção à marcha da Expedição, garantindo-a contra a possibilidade de uma
agressão. E sempre que ele afirmava haver índio perto e que índios acompanhavam
a Expedição para atacar, as suas previsões se realizavam, embora as precauções
a que davam lugar os seus avisos.
Pois bem, Rondon
marchava Sertão adentro com um desses resistentes e leais Caciques da tribo dos
Parecis. A ânsia de avançar o mais possível com o reconhecimento, fez com que
ele resistisse aos desejos manifestados pelo índio no sentido de escolher para
pouso um certo Córrego, a que atingiram quando já o Sol estava mais para o
poente do que para o zênite. Debalde o Pareci ponderava que poderia acontecer,
como sucedera certa vez, não encontrarem outro pouso à distância conveniente,
antes de cair a noite.
Fácil admitir tal
hipótese quando se marcha por terreno desconhecido, como era o caso. À vista,
porém, da decisão terminante em que se manifestava o Chefe, partiu o índio de
novo com ele, prosseguindo o reconhecimento, não sem um olhar de inveja para a
linda ramagem que ensombrava a água marulhenta e fresca… O receio talvez de
que a previsão do índio se realizasse, produziu desde logo um aumento de
velocidade da marcha. A certa altura, quando começava a tardar a descoberta de
outro Córrego, o índio estacou. Carregou o sobrolho, olhou fixamente o Chefe e,
sentando-se no solo, declarou solenemente que dali não sairia mais; que tinha
as pernas cansadas mesmo e nem um passo mais daria em frente; se Rondon quisesse,
que fosse sozinho! Não houve lógica capaz de o convencer do contrário! Este fato
é bastante eloquente, ao que me parece, para demonstrar a que limites atinge a
resistência de Rondon.
[…] o próprio
Rondon é quem nos pretende convencer de que qualquer homem pode fazer o mesmo e
que para isso é bastante querer! (MAGALHÃES)
O Homem e Seu
Estilo
Tenente Lyra, cuja
memória venero sob todos os aspectos, dizia-me sempre em suas palestras
cintilantes:
‒ Rondon é uma
individualidade difícil de apreciar, porque apresenta uma infinidade de
aspectos. Tal a verdade que cada vez mais se acentua em meu espírito, quanto
mais medito sobre a sua personalidade. É uma espécie de prisma de muitas faces,
de cores variegadas, cada qual mais brilhante. Não só porque o estilo é o
homem, como também para que se aprecie a maneira por vezes original com que ele
descreve as coisas e a empolgante beleza literária de algumas passagens
referidas ao correr da pena; aqui transcrevo trechos traçados pela sua própria
mão, onde se encontram atestados autênticos das suas opiniões e dos seus
ideais.
À noite, tivemos
um espetáculo maravilhoso, determinado pelo incêndio que irrefletidamente
ateamos ao macegão da várzea da Laguna Zoerekê. Todo o chapadão em derredor foi
destruído pelo fogo voraz que se alastrava em línguas extensas, lambendo a
macega ressequida e deixando após si o negrume da sua destruição; apanhando não
só os insetos e répteis, como os pequenos mamíferos e até aves, como os
inhambus, perdizes, maxalalagás (saracura do chapadão) e seriemas.
No Utiarity, o Rio
corre mansamente antes da queda; ao aproximar-se desta, deu-se o desnivelamento
brusco, de modo a formar uma grande corredeira marulhosa e, junto do salto, as
águas se subdividem por causa d’uma pequena ilha. Um grande golfo forma-se à
esquerda; outra porção maior contorna a ilha à direita e, antes de se despenhar,
se subdivide, indo uma pequena parte para o abismo, onde cai como extenso e
alvo lençol e a outra, de maior volume, volve por um salto preliminar a
encontrar-se com o grosso das águas provenientes do golfo. O panorama é
empolgante e tão belo que me levou a dar-lhe este apelido ao simples ver.
Através de irisantes arco-íris, destacam-se à vista do observador as gradações
de cores na linha de incidência da superfície plana que vem, com a convexa que
desce, na queda d’água, desde o nacarado e verde-gaio até o plúmbeo argentino e
azul-celeste. Cobrindo a enorme bacia formada pelo martelar contínuo e
milenário da possante queda, lá está a poeira d’água, desbordante que, por fim
sobe, torcicolando, a marcar, no meio da floresta imensa, o ponto em que o chapadão
se erodiu, determinando o descomunal desnível.
Não resisti ao
desejo de ver a arcada que todo o salto, apresenta, formada lentamente pela
ação física dissolvente e mecânica das águas. […] é simplesmente arrebatador,
feérico, os arco-íris cruzam-se, as névoas condensadas não permitem a ninguém
aproximar-se do incomparável anfiteatro, sem receber as entrudescas
manifestações da maravilhosa catarata; circunda-o luxuriante vegetação,
forrando de alcatifa do verdor aqueles escombros areníticos, produto da
fenomenal fratura. As andorinhas dos saltos a brincarem, em voos mergulhantes,
atravessam a formidável massa líquida que se despenha. (MAGALHÃES)
Vaqueiro Mimoseano
Se alguém se
refere a seus inestimáveis serviços, contesta, atribuindo-os aos companheiros.
Foi, na realidade, conjunto raro o dos auxiliares de Rondon ‒ é que, como os
grandes chefes, sabia escolher “the right man for the right place”. E, depois,
impunha-se pela força do exemplo, executando inúmeras vezes aquilo de que
ninguém era capaz, como capacidade física também. Narrava-o nosso saudoso amigo
General Ivo Soares, mais tarde Presidente da Cruz Vermelha Brasileira e, na
ocasião, Chefe do Corpo de Saúde do Exército: Era Rondon Capitão
Chefe da Comissão Telegráfica do Sul de Mato Grosso e eu 1° Tenente médico da
mesma comissão. Certa manhã, não havendo os campeadores aparecido com o animal
de montada do Chefe e tendo este um compromisso que o obrigava a seguir para
Coxim, mandou encilhar uma besta de tração que se encontrava no acampamento, não
obstante a ponderação da ordenança que, com toda a disciplina, lhe viera
transmitir um recado do arrieiro: aquele animal não dava montaria e, mesmo como
animal cargueiro, várias vezes corcoveara com as cargas… Respondera-lhe
energicamente o Chefe, reiterando a ordem para que se arreasse a besta com os
seus apeiros, apertando bem a cilha. Trataram, então, de obedecer-lhe. Mas,
para tanto, foi mister amarrar solidamente o muar a um palanque e vendar-lhe os
olhos. O animal bufava como touro ou como onça… Era um domingo e estava o
pessoal em descanso, de modo que a nova despertou a curiosidade geral e, por
entre o arvoredo e escondidas por trás das barracas, convergiam os praças os
olhares para o palanque e talvez estivessem alguns antegozando a queda espetacular
do seu Capitão.
Rondon examinou
cuidadosamente a implantação da cilha, que dividia em duas a barriga do animal,
os loros, as rédeas e, de um pulo, cavalgou a fera, que foi rapidamente
desvendada e solta das amarras. Reproduziu-se, então, um daqueles espetáculos
do “far-west” Norte-americano ou dos nossos destemidos domadores, nas campinas
do Rio Grande do Sul, entre os “vaqueiros” do Norte ou de Mato Grosso. O animal
saiu como um raio, aos corcovos, barafustando pelas barracas, derrubando
ramadas, dando coices, como se tivesse enlouquecido! Era terrível e parecia
indomável. Mas o peão era também de se lhe tirar o chapéu! E não caiu, tornando
vãos todos os desesperados esforços da alimária para o deitar ao chão. Depois
de empolgantes passagens, conseguiu o cavaleiro metê-lo na estrada e nesse dia
se apresentou em Coxim, montado na besta já domada, banhada de suor copioso,
com a boca ensanguentada. (VIVEIROS)
(Hiram Reis e Silva (*), Porto
Alegre, RS, 10 de maio de 2015)