Querida
Mãe, querido Pai…
Mãe, querido Pai…
O
tempo passa sobre as lágrimas que choro, já nem cicatrizes tenho do que um dia
me feriu. E no entanto a memória. Eu fui feliz; nós fomos felizes. A casa cheia
com a nossa alegria dentro. O quintal, o avô a contar mil e duas vezes as
histórias que já tinha contado mil e uma vezes; a avó sempre preocupada em
encher a mesa; os tios a dizerem que a vida custa. E custa, pai; e custa, mãe. Ninguém
merece uma casa vazia. E os cheiros? Os cheiros não passam. Os
cheiros são a melhor forma de se sofrer. Cheiro a cozinha onde um dia a vida, um
dia o sonho. Eu menino na cozinha cheia do avô, da avó e dos tios. Eu menino a
sonhar comigo, grande como os tios – «um dia vou ser rico e comprar muitas
coisas». Eu menino a querer crescer.
tempo passa sobre as lágrimas que choro, já nem cicatrizes tenho do que um dia
me feriu. E no entanto a memória. Eu fui feliz; nós fomos felizes. A casa cheia
com a nossa alegria dentro. O quintal, o avô a contar mil e duas vezes as
histórias que já tinha contado mil e uma vezes; a avó sempre preocupada em
encher a mesa; os tios a dizerem que a vida custa. E custa, pai; e custa, mãe. Ninguém
merece uma casa vazia. E os cheiros? Os cheiros não passam. Os
cheiros são a melhor forma de se sofrer. Cheiro a cozinha onde um dia a vida, um
dia o sonho. Eu menino na cozinha cheia do avô, da avó e dos tios. Eu menino a
sonhar comigo, grande como os tios – «um dia vou ser rico e comprar muitas
coisas». Eu menino a querer crescer.
A
avó com um cancro dentro; o avô a ceder a cada dia que a sua Maria se ia; os
tios e as rugas. Todos a irem a cada dia em que eu crescia. Tudo morre quando
nos morrem os sonhos. Ninguém merece ficar para além dos sonhos. E já
não há avó e já não há avô. Há o cheiro da cozinha quente com os meus sonhos
dentro. O cheiro do quarto onde me escondia, debaixo da cama, para ver os
adultos falando. As palavras novas, palavras grandes, palavras feias.Ter
um pai e uma mãe. Só quando a casa se esvazia é que se sabe o que vale um pai,
o que vale uma mãe. E não interessa o que foi, o que ficou por ser. Não
interessam as palavras que um dia dissemos, os erros que um dia não evitámos
cometer. Não interessa a voz grossa do pai – «tens de ser um homem sério» – nem a dor muda da mãe. Não interessa
o que se perdeu quando se tem um pai e uma mãe para apertar. Ainda estamos aqui,
mãe. Ainda estamos aqui, pai. Ninguém sabe o que é perder quando
ainda tem uma mãe e um pai para abraçar. E enquanto tiver os vossos ombros para pousar
nenhuma lágrima morrerá solteira. (Pedro Chagas Freitas)