Alguns termos que se tornaram correntes com a popularização da internet são bastante interessantes. Um desses termos, que já é de uso comum em alguns círculos, é link (conexão, ligação, vínculo). Se observarmos mais demoradamente nosso raciocínio -e as reações emocionais que ele produz- veremos como uma série de links vincula nossos conceitos, não raro dificultando nossa compreensão da realidade.
É o caso com o conceito de poder. Há algum tempo, em uma atividade de grupo, alguém comentava que as relações entre as pessoas são sempre, também, relações de poder. Deu a maior discussão: “Como? Então as relações familiares são relações de poder?”. “Vai me dizer que as relações amorosas são relações de poder?”. “Poder é coisa de política e política a gente faz nos partidos”.
Quando a sociedade humana se constituía de bandos, cada grupo tinha que desempenhar todas as funções necessárias à sua própria sobrevivência. Dessa forma, o grupo era simultaneamente a unidade econômica, doméstica, militar, educacional, etc. Hoje, como vivemos numa sociedade onde a maioria das funções se realiza em instituições especializadas, já temos um link que nos remete diretamente da função à instituição correspondente. Assim, saúde é coisa que diz respeito ao médico; educação é coisa que diz respeito à escola; malhar é coisa que diz respeito à academia; poder é coisa que diz respeito à política e política é coisa que diz respeito aos partidos.
Se desfizermos esse link e analisarmos o conceito em si mesmo, recuperando seus vários significados, clareamos nossa compreensão tanto do conceito quanto do processo de comunicação em que ele se insere. Vamos fazer aqui esse exercício.
Antes, porém, façamos uma pequena retrospectiva antropológica. Desde o seu início, a humanidade vem modificando constantemente o ambiente em que vive e se vendo obrigada a permanentes exercícios de adaptação a essas novas situações que ela mesma produz, pois essas modificações não trazem consigo, de forma automática, as respostas educacionais e sociais requeridas. Esse processo vem se tornando cada vez mais difícil devido à velocidade exponencial de descobertas e inovações tecnológicas.
Nessa linha dialética de evolução, encontramos o ser humano buscando uma definição de si mesmo a partir de um sistema de relações altamente complexas que envolvem a natureza, que ele humaniza, que inclui tanto os objetos que ele produz quanto os símbolos,conceitos e idéias que constrói na busca de dar significado às coisas e os demais seres humanos com os quais compartilha essa aventura.
Com o desenvolvimento cultural e tecnológico, estamos cada vez menos sujeitos às exigências naturais propriamente ditas, razão porque nos tornamos mais alienados em relação à natureza, da qual não percebemos ser parte indissociável. Em contrapartida, cada vez mais as relações com os símbolos e com as pessoas se tornam vitais para nossa vida.
Eis porque as relações de poder -econômico, simbólico ou político- se tornam cada vez mais importantes[1].
Como já mencionamos, quase que automaticamente vinculamos a idéia de poder à idéia de política. É um desses links produzidos pelo tipo de sociedade que construímos.
Falemos um pouco de política. Na Grécia antiga, onde foi gestado, o conceito de política tinha uma definição meramente administrativa: política era a administração da polis (cidade). É evidente que as relações políticas na antiga Grécia eram relações de poder, mas não eram assim percebidas naquela época e, mesmo que o fossem, não tinham o mesmo sentido que têm hoje.
Embora o exercício da política fosse privilégio dos homens livres, excluídos daí servos, escravos e mulheres -o que já é uma relação de poder-, envolviam um nível de consciência e universalidade bem maior do que o de hoje[2].
Na antiga Grécia, administrar a polis era administrar um espaço público. Para nós, que experienciamos o público como algo que foi patrimonializado, isto é privatizado e monopolizado, o conceito de política remete a um sentimento de espaço e poder privados. Numa sociedade de classes, como a nossa, a disputa política é uma disputa pelo poder por parte de uma classe ou de frações de classes, cujos interesses estão longe de ser comunitários.
Para nós, portanto, relações políticas remetem à idéia de relações de poder privado -pessoal, de classe ou grupos determinados. A polis, em decorrência disso, traduz-se, em nossos sentimentos, como um espaço de disputas particulares e, em contrapartida, espaços particulares também se traduzem como espaços de disputas políticas. Por isso, as várias expressões de luta -por espaço, por domínio, pela inclusão, pela aceitação; ou de mera resistência à exclusão- são entendidas como relações políticas, e com esse sentido se aplicam à escola, à igreja, à família ou às relações intra ou inter grupais.
Vamos, agora, ao conceito propriamente dito. Poder sempre se define como verbo transitivo: poder é poder…mandar, fazer, decidir. Inclusive, num sentido nem sempre visto como político, poder… comer, cuidar-se, aprender…ser. Poder é sempre poder alguma coisa.
Eu posso, contudo, desejar poder algo muito pessoal, como ler aquele belo livro que reservei para hoje à noite, ou algo que envolve minha relação com outra pessoa, como convence-la a me permitir decidir sozinho o cardápio do jantar. No primeiro caso, conquanto envolva uma série de circunstâncias que podem ou não ser favoráveis, o poder ler depende apenas de minha decisão. No segundo caso, poder envolve uma série de transações com o outro que podem incluir argumentação, sedução, alguma chantagem e, in extremis, imposição de força. É neste caso que podemos falar de relações de poder.
Assim entendido, o conceito se define de forma mais clara, permitindo abranger aquelas situações às quais parecia que ele não se aplicava. Quando, na família, marido e mulher, pais e filhos, exercitam ou disputam o direito de decidir por si mesmo ou por alguém, de garantir ou ocupar espaços, se exercita o poder, e esse caráter da relação familiar é político. Quando os dois namorados discutem sobre a esticada daquela noite, se no barzinho preferido dele ou na lanchonete preferida dela, se exercita o poder, e esse caráter da relação amorosa é político. Daí porque ninguém pode ser apolítico e, ainda que sob nova ótica, o ser humano -como queria Aristóteles- continua sendo um animal político.
Estas reflexões começaram com uma questão que foi levantada num grupo de vivência, quando alguém afirmou que as “relações entre as pessoas são sempre, também, relações de poder”. Não foi afirmado que as relações entre as pessoas são às vezes de poder, mas também de poder. Isso quer dizer que são sempre, embora não exclusivamente, de poder.
Feita essa constatação, podemos entender melhor o espanto que provocou as exclamações: “Como? Então as relações familiares são relações de poder?”. “Vai me dizer que as relações amorosas são relações de poder?”.
Agora, finalmente, cabe recuperar o fato de que poder, assim como político, ou econômico, ou afetivo, são conceitos. Como tal, é uma construção que usamos para compreender uma realidade, embora venha a fazer parte daquele universo onde links unem conceitos a sentimentos, coisas a valores, atos a ideologias, tudo fazendo parte de uma rede complexa que apelidamos modernamente de sistema. Na verdade, nada mais há do que seres humanos inseridos na materialidade do mundo e se relacionando -pessoas, coisas e conceitos, lembra?-, com tudo que isso envolve de misterioso.
No núcleo desse processo, no que ele tem de mais fundamental, “em última instância” -diria Engels-, está o jogo pela sobrevivência. Marx já havia dito que, apesar da beleza dos sentimentos e das idéias, para que haja mundo é preciso que existam homens vivos. É com esse sentido, e não diminuindo de importância os sentimentos ou as idéias, que sobreviver é dado como fundamental. Por esse motivo, tudo que se aproxima perigosamente desse núcleo -como uma ameaça de desemprego, de prejuízo financeiro ou de desprestígio profissional- gera reações mais enérgicas e até mais violentas. Afastando-se desse núcleo, embora não se dissociando dele, como se fossem pontos colocados em uma espiral que se afasta do centro, se posicionam hierarquicamente outras necessidades de nossa natureza, como a de afeto, de aceitação, de reconhecimento e tantas mais se queiram. Assim, quando falamos em relações econômicas, políticas, afetivas, culturais ou religiosas, falamos tão somente das complexas relações humanas que, em dadas circunstâncias, recebem uma ênfase x ou y, o que nos faz defini-las desta ou daquela maneira, em função da necessidade que está naquele momento em foco.
Para exemplificar: se nos damos as mãos para orar, se dirá que esta nossa relação é religiosa; se nos unimos para produzir um artigo para o mercado, se dirá que essa nossa relação é de produção; se apenas nos encontramos para um chope e um bate papo, se dirá que essa nossa relação é de amizade; e assim sucessivamente. Todas são relações humanas, diferenciadas apenas pelos objetivos. Entretanto, mesmo quando estamos ali reunidos para o chope e o bate papo, ainda que de forma latente, estão também presentes todas as outras “necessidades” de nossa natureza -biológicas, psicológicas e sociais. Exatamente por isso um grupo não pode funcionar exclusivamente ao nível da tarefa.
Um grupo, portanto, é uma rede complexa de relações que envolvem esses vários aspectos de todos seus integrantes, num movimento constante de troca onde ressaltam, por condicionamentos tanto estruturais quanto conjunturais, ora amores e ora rancores; ora acordos e ora conflitos; ora avanços e ora retrocessos.
E estejamos conscientes de que os grupos maçônicos não são exceção a essa regra.
[1] Fela MOSCOVICI trata esse tema em DESENVOLVIMENTO INTERPESSOAL, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1986.
[2] Os trabalhos de Hannah Arendt pretendem uma crítica da política atual a partir da recuperação da idéia clássica
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