Como o Capitalismo valoriza o Ser Humano
No mundo da economia de
mercado, tanto aqui quanto na China, o indivíduo é muito valorizado. Por uma
razão muito simples: cada pessoa, em maior ou menor grau, é um consumidor. Com
a agravante de também ser um contribuinte compulsório de impostos, taxas,
emolumentos e o diabo a quatro.
De repente, num desfile por um
shopping, pedi ao meu costumeiro anjo da guarda que me informasse sobre
os pensamentos despertados, por minha insignificante passagem, aos
comerciantes e prestadores de serviços. Eis o diálogo com meu
anjo-intérprete:
–
Anjo, o que está pensando sobre mim aquele chefe de salão de cabeleireiro?
–
Ah, mesmo você sendo calvo, não deixa de ser uma boa sugestão para várias
modalidades de negócios para ele: um aplique discreto de mechas, condizentes
com seu perfil, preferentemente acaju, ou mais ou menos no tom do bigode usual
do Sarney. Ou, em último caso, ainda que seja meio apelativo, uma peruca – um
pouco mais em conta, claro – do que a usada pelo Silvio Santos – concluiu meu zeloso guardador.
Logo à frente, uma loja de vestuário e acessórios, e um olhar cravado em meu
perfil nada anônimo como consumidor. Em se tratando de comprador, o que vier é
lucro para quem vende. Perguntei ao anjo no que minha presença sugeria ao
vendedor estacado na porta de vidro.
–
Ouça, esse pensa em lhe vender um chapéu. Talvez uma cartola, por sua idade.
Pelo visto sua calvície enseja insights sugestivos. Este homem de vendas,
agora, está despindo-o, para, se você parar por aqui, lhe sugerir a compra de
cuecas, em meio a grande variedade. Você não escaparia mesmo que se desculpasse
por usar somente o modelo samba-canção – disse em tom angelical num sacudir de
asas. Já avaliou até o número que você veste. É “GG”.
– Isto é o cúmulo, companheiro alado! Isso é devassar a minha intimidade, como
mero objeto de uma transação de compra e venda.
– Ele também pensa em lhe vender um sapato de Franca, uma cinta de
Araraquara, uma bota de Ubirajara, uma camisa francesa, uma gravata italiana e
tudo o que pode representar um lucro razoável. Por sua aparência, seu cartão de
crédito deve ser de mil reais, mas uma vez que você goste dos produtos e do
atendimento, se voltar mais vezes deixará mais dinheiro para o caixa da loja
dele – sapecou o anjo entre sucessivas gargalhadas.
E assim fomos pelo shopping afora, e assim foi meu guia invisível
traduzindo-me, com suas galhofas e risadas, qual mote de inspiração eu
sugeria aos diferentes homens e mulheres de vendas.
Meu intérprete celeste deixou-me tão irritado que tomei-o por uma das asas e
forcei-o a irmos para a rua tomar um táxi para sairmos dali o quanto antes. Eis
que bem próximo, em letreiros sugestivos, uma viatura na
cor cinza metálica uma funerária está à procura da morte a domicílio
com seu marketing discreto, mas não menos cabotino. A esta altura, nem o asudo
achou graça. Até ele acabou por concordar que tudo aquilo era demais. E fiel à
sua proposta de médium dos vivos, assim advertiu-me, sacudindo a cabeça:
(Geraldo Generoso, de Ipaussu)
motorista ali? Pois é. Ele sabe que você mede 1,69 m, tem 64 anos (o que
significa estar praticamente “no ponto”), pesa 81,5 k, e não é tão chegado em
flores, nem é dado a velas, o que significa menos investimento em
custo-benefício, indiretamente significando maiores lucros.
taxista, entramos no veículo e fomos para a rodoviária pegar o ônibus para a
roça. A viagem, do táxi e do ônibus foi tranquila e segura. À chegada, o meu
companheiro invisível, além da costumeira proteção ainda me conscientizou de
uma vantagem:
é! No fim ainda saímos no lucro. Você pagou uma passagem só e viajamos nós
dois…de táxi e de busão, e aqui estamos longe do assédio, visível e
invisível, e menos invasivo do que o mercado puro sangue da metrópole.